Jandira Feghali: Desvio de rota 

São muitas as dificuldades do complexo Sistema Público de Saúde (SUS). Minha trajetória profissional, como médica concursada do Ministério da Saúde, foi extraída nos vários anos de emergência e ambulatórios públicos, lidando diretamente com a população, convivendo com suas emoções, dificuldades, carências e necessidades. Pude perceber a realidade e minha vida pública se orientou pelos chamados que buscavam solução aos problemas de saúde que o Brasil enfrenta.

Por Jandira Feghali* 

São problemas de vários matizes nas dimensões de um país como o nosso, com as desigualdades econômicas, sociais e regionais. As demandas na saúde levaram o governo a editar a Medida Provisória 621/13, instituindo o programa Mais Médicos, que ganhou espaço inusitado na comunicação e no seio da sociedade brasileira. No entanto, há equívocos.

Primeiro, por parte do Governo Federal ao construir uma MP de vigência imediata, sem se socorrer do acúmulo e da parceria do parlamento e dos profissionais, sem diálogo. Acabou por não dar a devida transparência a informações e detalhes sobre o processo intercambista, às razões que levam governo a não oferecer vínculo de trabalho aos médicos brasileiros ou promover uma mudança brusca na formação médica sem ouvir as próprias universidades.

Sequer agregou a essas discussões, outras que devem ser encaradas para que, de fato, os problemas da saúde brasileira sejam superados, como querem as ruas de todo o país.
Por outro lado, parte da categoria, no enfrentamento do assunto, se distanciou da sociedade brasileira e da possibilidade de uma solução real. A resposta ao projeto foi apartada do necessário debate estrutural e aliada a uma visão predominantemente corporativista, desprezando a importância social desse profissional. Ao invés de se aproximar da sociedade e buscar soluções, distanciou-se do povo e destruiu pontes. Essa atitude não reflete a dedicação e altruísmo de boa parcela dos profissionais que, na ponta do sistema, seguram o atendimento, as cirurgias e as emergências.

A consequência dessa posição, aliada a uma poderosa ofensiva nos meios de comunicação, foi o isolamento dos médicos. A sociedade cobra a presença do médico e não aceita argumentos e muito menos preconceitos. A recepção feita por grupos de médicos aos intercambistas cubanos é inadmissível. Receberam de forma indelével o carimbo final de elite branca e preconceituosa contra os médicos negros e a população pobre. Posição conservadora, xenófoba, de desqualificação e desvalorização dos colegas. Faltaram com a ética, em relação aos demais médicos e ao povo. Quando um dirigente de entidade médica orienta recusar atendimento a quem fosse vítima de erro médico de profissionais estrangeiros, percebemos onde a irracionalidade pode chegar.

Esse cenário era o que eu mais temia. Uma polarização inadequada, que acabou por desviar a rota da histórica discussão sobre a saúde brasileira. Pautou-se por uma discussão secundária de quem pode ou não pode atuar, dentro das 15 mil vagas solicitadas pelo Ministério da Saúde, particularmente quando estes irão para cidades mais longínquas e de difícil acesso. A assistência à saúde não depende só dos médicos, mas também não se faz sem eles.

O mínimo que se espera de nós, parlamentares, é estabelecer o correto debate e avanço do texto da MP retomando a mediação necessária no sentido de garantir assistência ao povo e conquistas aos profissionais de saúde que levantam reivindicações legítimas. A MP 621/13 tem distorções que precisam ser corrigidas e devemos aproveitar este debate para erguer questões estruturais de financiamento, recursos humanos, formação e estrutura de assistência.

Nosso modelo de financiamento continua privilegiando o setor privado complementar deixando a Atenção Básica subfinanciada, as universidades públicas com poucos recursos, carreiras sem solução visível, serviços sendo privatizados e terceirizados. Há grande chance de se fazer a discussão que mais importa e parcela de representantes dos médicos está perdendo a autoridade para fazê-la pelas atitudes tomadas até aqui.

Os médicos são chamados à negociação e contribuição. O governo está chamado ao diálogo. A população deve manter-se atenta e mobilizada exigindo saúde para todos, que é direito seu, onde quer que esteja, principalmente onde está à margem do sistema de saúde.
Sair da ponta do ‘iceberg’ para sua enorme base – onde se encontram os seus verdadeiros desafios – é retomar a rota.

*É deputada Federal pelo PCdoB do Rio de Janeiro e presidenta da Comissão de Cultura da Câmara