"Rap é compromisso", afirmam 'trepadeiras' em ato de repúdio à música

Mulheres indignadas com a música "trepadeira" do rapper Emicida convocaram nas redes sociais um ato de repúdio ao cantor de rap que lançou seu novo trabalho na noite de terça-feira (10), no Sesc Pinheiros, em São Paulo. A letra da canção? Um 'desabafo' de um cara que foi traído pela mulher e que, segundo ele, "dava mais do que chuchu", e que por isso merece "uma surra de espada de São Jorge". E arremata: "Dei todo amor, tratei como flor, mas no fim era uma trepadeira".

Por Deborah Moreira, do Portal Vermelho

música termina com risadas dele cantor de rap, contestador, defensor da cultura negra, da periferia, e de Wilson das Neves, que faz participação na faixa do disco "O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui", tido por muitos críticos de música como obra-prima do artista. Para outros, Emicida é referência em empreendedorismo e de superação. Para as mulheres, mais um glorioso exemplo da misoginia (ódio às mulheres) e de incitação à violência contra a mulher.

É justamente pelo referencial que ele tem que muitas mulheres, principalmente do meio da produção cultural, ficaram decepcionadas. "Tô cansada de ver a naturalização da misoginia, esse ódio da mulher. Já é difícil aceitar isso de alguém que não tem uma função na cena cultural, ainda mais ele[Emicida], que deveria ter um compromisso com o social, com a periferia, com as mulheres", declarou Ana Paula Galvão, que atua com gestão cultural e é uma das manifestantes que convocou o ato pelas redes sociais.

Segurando faixas, cartazes e entoando palavras de ordem, elas chamavam a atenção dos que vinham chegando para o show. Também houve panfletagem de uma cartilha sobre violência doméstica, feita pela Secretaria de Mulher de São Paulo, e de uma moção de repúdio contra à "naturalização da misoginia e da violência contra a mulher na produção cultural".  

De acordo com as feministas presentes para o ato, o objetivo não é censurar o trabalho do artista: "O que não dá para aceitar é que ele cante isso em um show que seja financiado com dinheiro público, por exemplo, ou que sirva como tema de uma novela ou, pior, seja regravada por outro artista lá na frente", completou Ana Paula, que conhece a atuação do músico também como empreendedor e lamenta muito que "alguém que uso como exemplo de economia criativa, faça uma coisa dessa".

A estudante Isadora Couto soube do ato pelo Facebook e fez questão de estar presente para repudiar a música e tudo o que ela representa: "Fiquei bastante decepcionada. O Emicida é o rapper que representa a cultura da rua, o povo da rua, e eu acho que foi uma falta de compromisso com as pessoas marginalizadas e excluídas da sociedade. É uma música que incita o ódio e a violência contra a mulher. Mais do que licença poética, isso é uma falta de responsabilidade com a sociedade".

Poesia lida em show libertou a ele próprio

A mobilização das mulheres já surtiu efeito. Instantes antes de cantar a música "Trepadeiras", Emicida fez referência ao fato de estar sendo chamado de machista e foi logo disparando uma poesia em uma suposta homenagem à mulher. ”Mulheres devem ser livres, pra escolha feliz, a sós ou nao. Como cantei em ‘Ela disse’. Mulheres devem ser livres, aqui ou onde for, bem cuidadas, mas eu já disse isso em ‘vou buscar minha fulô’. Mulheres devem ser livres, pra ser feia ou ser bela, ser tudo, mas eu falei sobre isso em ‘eu gosto dela’. Mulheres devem ser livres, sem esculacho, livre ‘mermo’, se quiser, até pra ser macho. Mulheres devem ser livres, de rocha, mãe, forte, daquelas que eu cantei em ‘Rotina’. Mulheres devem ser livres – pra ser puta, ser santa, das que atraem, das que traem, mas também das que cantam". Ao final, emendou: "Mulheres devem ser livres, pra ser fraca ou guerreira, pra ser o que quiser, inclusive trepadeira”.

Mas, afinal, a poesia libertou as mulheres trepadeiras? Como as manifestantes gritavam durante o protesto: "Rap é compromisso". E, neste caso, o rap é contradição. A poesia de Emicida só expõe as contradições latentes em todos nós pretos, brancos, homens e mulheres, da periferia ou do centro. Ter consciência de que elas estão presentes e de que é preciso enfrentá-las e não simplesmente fazer uma rima e correr para o abraço do público, deixando por isso mesmo…- aquele abraço! – é obrigação de quem se propõe a ser figura pública e ficar dando pinta de crítico ao sistema. Somos todos e todas machistas, homofóbicas, racistas e ditadoras, entre muitos bons pensamentos e 'vibes' positivas que emanam de nós, também. A sabedoria do homem (e da mulher) está em, mesmo carregando tudo isso dentro de si, saber diferenciá-las, combatê-las, apesar de estarem profundamente enraizadas em nós após inúmeros processo culturais, ao longo de muito tempo.

Essa música é fruto da misoginia enraizada na cultura de todos nós. A poesia do rapper não liberta as mulheres, que buscam autonomia e direitos iguais. A poesia liberta somente a ele próprio. Se fosse uma ode à mulher de fato não sapecava a música logo em seguida. Perdeu a chance de abrir um diálogo, de refletir, de contribuir com que o debate seja feito com seu público, com a opinião pública e até com a própria mulher a quem ele insiste em chamar de trepadeira só porque não quis ficar somente com ele (ou a ele pertencer). Ela quis ser trepadeira, e daí vacilão?!