"Ontem, no bar, tive a impressão de ver o rapaz que me estuprou"

Estou completamente sem tempo para postar aqui no BiDê. Aí a Martina* me pediu para publicar este relato sobre a experiência que ela viveu há algum tempo quando teve que lidar com o próprio estupro. Normalmente não abro este espaço para relatos pessoais, porém a Martina* é amiga querida e o post traz algumas reflexões importantes sobre a sociedade e violência sexista.

*Martina foi usado pra preservar a identidade desta minha amiga.

Eu não tenho certeza pois, como na noite em que ele me seguiu até minha casa, eu estava bebendo cerveja e pode ser que meu estado de percepção estivesse um tanto alterado. Enfim, eu não estou afirmando que vi o rapaz que me estuprou no bar, mas afirmo sim – e com toda convicção – que tive a sensação de tê-lo visto.

Eu senti medo, vergonha e vontade de ir embora. Vontade de sair de fininho como se nunca tivesse aparecido no lugar, como se naquela noite não tivesse decidido ir dar uma volta com meus amigos e amigas, beber cerveja para relaxar, fumar cigarros e caminhar pelas ruas noturnas como se meu corpo não fosse um alvo para o açoite machista.

Claro que falar para as pessoas que estavam comigo na mesa que eu me sentia mal por ter visto uma pessoa que me fez mal não foi uma possibilidade. Como eu poderia explicar que estava mirando meu possível algoz se nem contei que fui um dia vítima de sua “necessidade de macho” de fazer sexo com a primeira pessoa que passasse? Eu passei. Estava voltando para casa sozinha, alcoolizada, e ele me abordou e me violentou.

(A escrivã falou assim para mim na delegacia onde fui fazer o B.O: “mas se você estava alcoolizada, não podemos afirmar que foi um estupro, você estava em uma situação permissiva… Não temos um crime aí”. Graças a um contato com amigas mais esclarecidas que eu e que a escrivã, descobrimos que meu caso se encaixava no que se chama de “estupro de vulnerável” – quando a vítima não tem condições físicas ou psicológicas de decidir sobre o ato sexual).

Consegui fazer o boletim de ocorrência e portanto realizar todo o tratamento contra doenças sexualmente transmissíveis e contra a possibilidade de uma gravidez indesejada. No Hospital Pérola Byigton, em São Paulo, existe todo um programa que dá suporte à mulher em situações como a que eu vivi. Não sei se foi apenas no meu caso, uma sorte que tive, ou se é sempre assim, mas eles me trataram com muito cuidado, desde o momento em que eu dei entrada no hospital até os últimos dias quando eu precisei retirar o último kit de medicamentos usados para prevenção do vírus HIV.

Esse coquetel que eu tomei foi uma bomba no meu corpo, eu tinha que tomar meia hora antes de cada dose (uma combinação de dois ou três remédios anti-HIV, já não lembro mais) dois remédios para o estômago. Se eu não tomasse (como muitas vezes acabei tendo que fazer pois o remédio para o estômago dá um puta sono e eu ficava incapacitada de trabalhar) sentia dores terríveis, uma gastrite aguda, enjoo, náuseas, vontade de vomitar (ainda bem que eu não vomitei nenhuma vez, porque se o fizesse, teria que repetir a dose do coquetel). O tratamento durou um mês. Nesse tempo eu escondi das pessoas o porquê de estar deprimida, de não estar bebendo, sem fome, de estar indo dormir cedo, sempre abatida, sempre cansada e com uma tristeza amarga nos olhos e no corpo que ninguém entendia – é que eu sempre fui uma garota muito bem humorada, muito da risada. Eu gosto de rir alto, gosto de ir para o bar falar das bobagens, falar da política, falar da arte… Não vou parar de fazer isso. Tentaram me fazer parar, enfiaram o dedo na minha cara, enfiaram um pau em mim, e disseram: LUGAR DE MULHER NÃO É NA RUA! NÃO É NO BAR! NÃO É NA NOITE! E SÓ É NO DIA PORQUE A GENTE PERMITE!

E me machucaram. Eu falo no plural porque esse cara que me violentou não é só um, ele é muitos, ele é toda a nossa cultura machista que delimita os territórios onde as mulheres podem e devem atuar como seres sociais. E eu sou muitas também, e sou muitxs (com x mesmo, nessa estranheza linguística, pra rasurar bastante essa dicotomia burra de gêneros que não abarca as pessoas que pulam fora das regras heteropatriarcais). Eu fiquei em casa muito tempo, com medo que violassem novamente o meu corpo, meu campo de luta, com medo que acontecesse em mim, no que eu sou, mais uma tragédia, mais um símbolo de que eu não devo ter sexualidade, não devo exibir quem eu sou na Medina.

Enfim, eu voltei pras ruas. Mas a força não saiu só do meu coração… Meu regresso ao mundo público não se deu por uma força espontânea e individual: eu voltei depois de ter falado com pessoas que entenderam o que eu estava vivendo, que decidiram lutar junto comigo contra o machismo, contra essas doenças que botam no corpo da gente pra gente se achar feia e infértil de prazer. Eu voltei quando encontrei meus pares, quando me organizei com pessoas que todos os dias enfrentam as guerras que a sociedade insiste em ocultar com suas bandeiras estatísticas de bem-estar social e seus índices de desenvolvimento humano.

É triste eu não ter tido coragem de falar para as pessoas que eu estava angustiada e queria ir embora. Eu lamento ainda ter, dentro de mim, essas sombras contra as quais preciso lutar.

Como eu estava alcoolizada, não consegui lembrar o rosto dele na hora da denúncia. Durante semanas eu andei pelo meu bairro achando que todos poderiam ser ele. E pensava assim: se naquela noite ele não tiver bebido, então mais uma vez ele tem sobre mim uma vantagem, ele me conhece, sabe onde eu transito e eu só tenho um rascunho na minha cabeça, cheio de lacunas originadas por um processo deletério que eu nunca tinha vivido antes. Depois eu tive de me desvencilhar dessa ideia fixa, posto que enlouqueceria se não o fizesse.

Eu posso ter cometido um erro. O cara que eu vi pode não ser o meu estuprador. Mas o bar, esse não tem engano, é um espaço heternormativo, a noite é a casa dos homens. Sinto que não estava totalmente paranoica ao achar que todos a minha volta poderiam ser o cara que me estuprou, todos poderiam tê-lo feito, todos os homens têm o poder avalizado por nossa cultura para fazê-lo. Mas isso vai mudar. Isso vai mudar e eu não vou mais ficar com vergonha de ter passado o que passei. Não me sentirei exposta e moralmente equivocada. Não me sentirei um lixo. Não terei que usar pseudônimos ao compartilhar minha história de violência de gênero.

Amanhã haverá de ser outro dia. 

Fonte: Bidê Brasil

(título original "Ontem, no bar, eu tive a impressão de ter visto o rapaz que me estuprou" alterado por redação Vermelho)