USP debate legado de Florestan Fernandes

Em palestra realizada na Universidade de São Paulo (USP), em 13 de setembro, a professora Maria Arminda do Nascimento Arruda, docente do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e pró-reitora de Cultura e Extensão Universitária da USP, analisou o legado de um dos maiores nomes da sociologia do Brasil: Florestan Fernandes. O evento faz parte do Ciclo de Conferências “50 anos das Ciências da Comunicação no Brasil”.

Autor de uma obra fundamental para a compreensão do Brasil e para a própria constituição da profissão de sociólogo no País, Florestan Fernandes (1920-1995) vem sendo visto por novos ângulos nos últimos anos. “Isso é ótimo, mas às vezes, na minha opinião, ele passou a ser entendido a partir de chaves redutoras, o que sempre me deu um certo mal-estar”, diz a professora Maria Arminda. Uma das “reduções” que incomodam a docente é a que o qualifica como um militante desde sempre. “Florestan era um homem de esquerda, naturalmente, mas nunca foi um militante até chegar ao PT”, afirma. Pelo partido, Florestan elegeu-se deputado federal em 1986, na legislatura que escreveu a nova Constituição brasileira, reelegendo-se em 1990.

Para a docente, Florestan foi central para a sociologia moderna no Brasil porque “instituiu uma concepção e uma linguagem sociológica diversa das outras linguagens e construiu o estilo acadêmico de reflexão em sociologia no País”. Até então, diz a professora, os chamados intérpretes da geração de 1930 falavam a partir de uma linguagem modernista, pois havia uma sincronia entre a linguagem e o próprio problema da reflexão. “Florestan não é um modernista nesse sentido. Ele é um cientista, que inaugura uma outra maneira, um novo cânone de construção da reflexão no campo das abordagens identificadas num sentido muito genérico de ciências sociais”, enfatiza.

Os trabalhos de Florestan no mestrado, “A organização social dos tupinambá”, de 1947, e no doutorado, “A função social da guerra na sociedade tupinambá”, de 1951, são obras de etnologia e ao mesmo tempo não o são, define Maria Arminda. O sociólogo fez nesses trabalhos “um exercício teórico levado ao limite”, inovando ao revelar em sua análise que “o funcionalismo é um método adequado para pensar sociedades em mudança, o que até então não ocorria”. Mais tarde, o professor escreverá sobre os fundamentos empíricos da explicação sociológica – e a pró-reitora pontua: empíricos porque a sociologia é pesquisa, e explicação porque é ciência.

Autoconstrução

Oriundo das classes populares, Florestan chegou aos bancos da USP como aluno, em 1941, via ensino público de qualidade, tema que seria sempre sua preocupação. A USP “é fruto das camadas tradicionais em processo de declínio, com a ascensão dos imigrantes e a absorção de algumas pessoas das camadas populares. O Florestan é essa figura”, define Maria Arminda. “Quem leu as suas memórias sabe bem o que ele disse sobre o seu lugar naquele universo de bem-nascidos, sendo ele, muito ao contrário disso, alguém sem a sociabilidade dos bem-nascidos.”

O estilo do sociólogo profissional não existia no país, e Florestan Fernandes o construiu, diz a pró-reitora, porque “encarnou do modo mais completo o projeto de sociologia e de ciências sociais desenvolvido no âmbito de uma universidade”. Ao ingressar na docência da USP em 1945, como assistente do professor Fernando de Azevedo na disciplina de Sociologia II, “refletiu sobre o papel do profissional, investiu como ninguém na formação de uma carreira e formou grupos de pesquisa no momento em que isso não era comum”, exemplifica. Desses grupos saíram nomes como Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Maria Sylvia Carvalho Franco e José de Souza Martins, para citar apenas alguns componentes de uma vertente que mais tarde ficaria conhecida como a escola paulista de sociologia.

O professor foi a figura-chave dessa construção. “Ele não tem saída social se não for professor da USP e sociólogo. Sem se considerar Florestan não se entende nada dessa dinâmica e desse desenvolvimento”, diz a professora. Antonio Candido, por sinal, ao escrever sobre o colega, afirmou que Florestan fora uma figura de muitas obras, mas talvez a mais notável tenha sido ele próprio. A vida intelectual acoplada ao que Maria Arminda chama da autoconstrução do professor tornou-se o núcleo central a partir do qual ele formulou o problema da investigação da sociedade brasileira em sua etapa moderna. Seus trabalhos sobre os índios, os negros, o peso da escravidão e os entraves para que o Brasil se constitua de fato como sociedade moderna permanecem fundamentais para o entendimento de nossa realidade.

Marginalidade

Maria Arminda encerrou sua conferência citando o trabalho “Tiago Marques Aipobureu: um Bororo Marginal”, estudo sobre a trajetória do indígena que, nascido em 1898 no Mato Grosso, foi levado por missionários salesianos para estudar na Europa em 1913. Voltou poucos anos depois, casou-se com uma índia bororo, mas não se adaptou à antiga vida. A mulher chegou a abandoná-lo, e ele nada podia fazer, porque “fora educado para viver entre brancos e não para enfrentar os perigos do mato e a dura vida de sua tribo”, escreve Florestan. Os padres, que o queriam missionário, também ficaram ressentidos, e Tiago viveu uma situação de marginalidade permanente.

O marginal, na definição de Florestan, é aquele que não dá uma solução ativa e fica na passividade, como Tiago. Para Maria Arminda, não é por acaso que o professor publicou esse trabalho três vezes ao longo da vida: em 1945, “no momento em que estava dando solução para a sua marginalidade”; em 1960, “quando já era o mais importante sociólogo brasileiro, firmado na academia”, e em 1975, quando é de novo um marginal nessa relação, aposentado compulsoriamente desde 1969 pela ditadura militar.

“Florestan volta a um tema sociológico central, ou seja, que a solução ativa ou passiva não depende diretamente das pessoas”, considera a pró-reitora. “Talvez a riqueza da análise sociológica seja revelar que o resultado das nossas ações frequentemente diverge das nossas intenções, porque não produzimos resultados de ação a partir do que gostaríamos: há um contexto que nos supera. Por isso a sociologia é uma disciplina de uma espécie de humildade, embora comumente os sociólogos não o sejam.”

Fonte: Jornal da USP