Angelina Anjos: Violência com as botas da ditadura

No Brasil, inúmeras das violações de direitos cometidas pelo Estado brasileiro foram herdadas do período ditatorial, como assassinatos na tortura de cidadãos, enquanto agentes da repressão faziam constar nos boletins de ocorrência que os mesmos haviam resistido à prisão.

Por Angelina Anjos (*), especial para o Vermelho

A criminalização da pobreza e dos movimentos sociais, a descriminação e o preconceito em vários sentidos, a truculência exercida por alguns batalhões da Polícia Militar brasileira, a abordagem policial estilo brucutu, simulação de delito, ocultação de cadáveres e a execução sumária justificadas nas ocorrências como auto de resistência são fruto de uma democratização não resolvida, onde se engrandece a ordem pela violência.

Um exemplo que ficará como um dos clássicos da violência cometida pelo Estado é o desfecho do caso Amarildo, que segundo relatório da Polícia Civil desapareceu após sessões de tortura que tinham como requinte de crueldade asfixia, choque e até ingestão de cera líquida. Amarildo foi torturado e morto depois de ser levado por policiais para a sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP).

O mesmo relatório aponta como costumeira as ações de tortura contra moradores através de depoimentos recolhidos na comunidade as práticas como asfixia com saco plástico, choque elétrico com corpo molhado, introdução de objetos nas partes íntimas e até ingestão de cera líquida eram alguns dos "castigos" aplicados aos moradores, dentro e fora das dependências da UPP. Situações que nos remetem ao período mais sangrento de nossa história.

Por essas razões, afirmar que a política desenvolvida pelo aparato da segurança pública no Brasil é prima-irmã das milhares de violações de direitos, no cotidiano das classes menos favorecidas, dentre os preferidos estão jovens, pobres e negros.

Em potencial somos todos observadores dos direitos humanos e a realidade vivenciada por muitos “Amarildos” traz em seu bojo a discussão de extinção ou desmilitarização das polícias no nosso país, não como objeto de revanche ou coisa do gênero, mas como uma forma de reparar direitos civis, políticos e sociais que há muito são violados.

Entretanto, observar os direitos humanos exige pensar a conquista da dignidade como uma tarefa coletiva, que necessariamente, se constrói a partir da capacidade de respeitar e de se fazer respeitar, compreender e se fazer entender com os outros, resignificar nosso olhar, fazendo valer o basta contra toda forma de impunidade que se materializa como um estimulante de alto poder para perpetuação de velhas e requentadas práticas.

Alguns insistem afirmar que extinguir ou desmilitarizar as polícias será para militarizar ainda mais o crime organizado, como se este precisasse utilizar algum subterfúgio para se manter armado. Isso também nos remete a(à) propagação como verdade do ditado popular: “Olho por olho e dente por dente” que conduz há anos a falsa impressão de legitimar a violência como forma de contenção da barbárie instaurada.

Entretanto, mais que repressão é necessário uma política de inclusão, onde as melhores armas sejam apontadas para modificar a realidade, onde a relação entre Estado e população seja humanizada e que as injustiças e abusos de poder sejam denunciados e julgados. Para isso, além de desmilitarizar ou extinguir deve-se requerer que seja posto em prática a justiça de transição, como maneira de confrontar o passado ditatorial e que venha ocorrer a responsabilização dos agentes públicos que ainda em pleno estado de direito praticam crimes de lesa-humanidade.

Assim, a fim de evitar situações de impunidade, cada medida tomada durante a transição deve ser submetida ao cumprimento dos direitos das vítimas que podem ser: direito à verdade, direito à justiça e direito à reparação.

Justiça de transição é reparar o dano sofrido para garantir o direito inalienável de conhecer a verdade e tomar todas as medidas necessárias para evitar a recorrência de violações. É rever e reescrever, trazendo à luz os crimes de ontem, condenando os criminosos, para que ninguém esqueça, para que nunca mais aconteça.

*Angelina Anjos é assistente social, militante da luta pelos direitos humanos, membro do Comitê Paraense pela Verdade, Memória e Justiça e filiada ao Partido Comunista do Brasil no Pará