Jarid Arraes: Mulher negra, nem escrava, nem objeto
Uma das maiores particularidades do racismo brasileiro é o modo como o preconceito se esconde sob a máscara de um país racialmente democrático. Com a justificativa de que o Brasil não enxerga cor e que é composto quase totalmente por pessoas miscigenadas, discursos de ódio são reproduzidos a todo momento.
Por Jarid Arraes*, Revista Fórum
Publicado 21/11/2013 10:31
O racismo dos brasileiros está na vida cotidiana, muitas vezes em atitudes sutis e comentários aparentemente inofensivos. Essa realidade cria limites muito palpáveis sobre as possibilidades e oportunidades das pessoas negras, podando as opções de quem podem ser e até onde podem chegar na vida.
Não é por acaso que uma das lutas atuais do movimento feminista negro é pela quebra de estereótipos; por meio dos estereótipos e papéis sociais impostos para as mulheres negras, a questão do racismo acaba empurrada para debaixo do tapete. Onde há discriminação e exclusão, levanta-se uma falsa admiração, que na realidade é objetificação sexual e exotificação da mulher negra. Ou seja, para cobrir o preconceito que vem sendo nutrido e espalhado há séculos, rotula-se a mulher negra com as poucas permissões que lhes são concedidas. Para gerar a consciência antirracista tão necessária, é preciso em primeiro lugar compreender a violência das caricaturas impostas às mulheres negras.
A Escrava:
O estereótipo de mulher trabalhadora e incansável é um dos mais antigos e reforçados, vigorando há centenas de anos e se adaptando às mudanças econômicas e culturais da sociedade. Se séculos atrás a mulher negra era usada e explorada como trabalhadora braçal, supostamente dotada de resistência física infinita, na contemporaneidade esse papel continua sendo intenso, as mulheres negras ainda são exploradas em campos de trabalho escravo, que ainda existem nos dias de hoje. Muitas delas são obrigadas a trabalhar em condições precárias e perigosas em troca de um valor monetário insignificante, estando presente na grande maioria das cozinhas dos lares brasileiros, mas praticamente nunca como grandes chefs da gastronomia e sim como eternas subalternas, que vivem para servir as famílias brancas e ricas.
Não importa se querem sonhar mais alto ou se têm algum problema legítimo, se estão doentes ou passando por um período de luto – algo bastante frequente devido ao genocídio policial contra os homens negros -, as mulheres negras nascem e crescem com poucas alternativas. Para muitas, é difícil alcançar outra coisa além do trabalho doméstico para famílias brancas, geralmente em forma de faxinas pesadas e salários baixíssimos. A mulher negra é a maior trabalhadora de nossa nação, porém não possui seus esforços reconhecidos; ao invés disso, sua dignidade é barganhada com ameaças de demissão e risco de desemprego.
Mesmo na televisão, nas novelas ou nos filmes, a mulher negra só aparece para representar a escrava de tempos antigos ou a empregada doméstica atual. De que forma, então, pode se esperar que meninas e adolescentes negras consigam se ver em profissões adequadas, em vivências plurais e dignas? É por isso que tal estereótipo de guerreira e batalhadora é tão nocivo: sua existência poda o potencial e a autoestima dessas mulheres, servindo como grilhões de sua liberdade.
O objeto:
Para as mulheres negras que não são vistas como escravas do trabalho braçal, resta o rótulo do trabalho sexual – igualmente exploratório e limitado -, que existe sob a pretensão de elogio, atuando como uma exibição de pedaços de carne baratos e hipersexualizados, como se uma tendência à “promiscuidade” fosse característica genética.
Não é preciso pesquisar muito para encontrar em qualquer rede social uma enxurrada de charges e imagens que apresentam garotas negras como “vulgares” e irresponsáveis, que engravidam ainda na adolescência e não aprendem nunca a lição. Mesmo mulheres negras com um maior nível econômico, como por exemplo a atriz Taís Araújo, são vítimas da objetificação, como pode ser notado no próprio nome da novela da qual ela foi estrela, “Da Cor do Pecado”. Seja por meio de eufemismos ou discursos hostis, a mulher negra sempre transita entre a indesejabilidade e a exotificação: às vezes, é considerada tão feia e nojenta que todas as partes do seu corpo são causadoras de ojeriza, mas por outras consegue se enquadrar no papel de “mulata” sensual e provocante.
A questão é que exotificação não é elogio, é objetificação. Não há qualquer valorização ou prestígio em marcar todo um grupo de seres humanos como produtos com valores comparáveis. Isso é uma das formas mais perversas de racismo, pois está oculto e disfarçado, sendo frequentemente confundido com inclusão. No entanto, basta um pouco de senso crítico para perceber que a preta “da cor do pecado” não é verdadeiramente aceita em sociedade, ela é vista como o terror das pobres donas de casa, como a sujeita sem moral, oportunista e interesseira, que destrói casamentos e faz do mundo um lugar menos limpo. Essas afirmações podem soar muito fortes, mas essa é a realidade das milhares de meninas sexualmente abusadas, que apesar de serem crianças, não encontram defesa, pois desde a mais tenra idade são consideradas provocantes e feitas exclusivamente para o sexo.
O que esses estereótipos possuem em comum é a redução da mulher negra ao seu corpo, ou seja, às supostas características intrínsecas que possuem desde sua formação genética. Por serem retratadas como mais fortes e naturalmente mais sexuais, todos os tipos de violação de direitos humanos são impostos às meninas e mulheres negras.
Em pleno ano de 2013, no mês da Consciência Negra, ainda falta muito chão para que o Brasil consiga dar às suas cidadãs negras a valorização que merecem. Até que ponto as pessoas são capazes de refletir a respeito desses exemplos e trabalhar no enfrentamento do preconceito? Pode ser difícil ir além da superficialidade dos discursos de inclusão, mas sem a quebra de estereótipos, jamais será possível extinguir, ou mesmo amenizar o problema do racismo.
* Psicologia Social, diretora do Femica (Feministas do Cariri), colunista na Revista Fórum.