O mercado: nem tão poderoso assim!
Por mais de duas décadas o discurso monetarista e conservador surfou praticamente sozinho nos fóruns internacionais de economia e nas organizações multilaterais.
Jaciara Itaim (*)
Publicado 07/12/2013 20:32
É bastante complexa a dinâmica de relações entre o movimento das ideias e as mudanças observadas no plano da realidade social e econômica. Em boa parte das vezes, as mudanças teóricas se antecipam às transformações nas sociedades. No entanto, há circunstâncias em que as crises são aceleradas por um conjunto de fatores e as forças das idéias ainda não se encontram amadurecidas o suficiente para incorporar os novos desenhos que se fazem necessários.
A eclosão da profunda crise financeira a partir de 2008 nos Estados Unidos e suas conseqüências para o resto do mundo parecem se enquadrar nesse segundo caso. Isso não significa dizer que não havia quem já criticasse os modelos mais identificados com o chamado neoliberalismo desde muito antes. No entanto, o fato é que por mais de 2 décadas o discurso monetarista e conservador surfou praticamente sozinho nos fóruns internacionais de economia, bem como nas instâncias das organizações multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM) e outros.
Desde a época do comando de Margareth Thatcher na Inglaterra e Ronald Reagan nos Estados Unidos, a partir do início da década de 1980, foi sendo consolidado um conjunto de idéias a respeito da forma de organização do mundo capitalista em novos moldes. Colaborou para essa radicalização, de natureza quase fundamentalista, o processo de desmantelamento das experiências dos países do chamado “socialismo real” do leste europeu. A idéia-força central ancorava-se na proposta de recuperar o papel do mercado – então apresentado em sua dimensão mais pura – como sendo a pretensiosa solução para todos os problemas da sociedade contemporânea.
Apologia do livre mercado e Estado mínimo
Qualquer dificuldade, instabilidade ou desequilíbrio eventualmente verificado na dinâmica social e econômica passaria a ser explicado pela expressão que ganhava espaço crescente nos meios de comunicação: as chamadas “falhas de mercado”.
Associada a tal compreensão surgia a proposta insistente de redução da presença do setor público na economia, uma vez que este era identificado como sendo o principal responsável pelas distorções existentes. A palavra de ordem central passou a ser a busca do “Estado mínimo”, reduzindo assim à sua dimensão mais diminuta possível qualquer possibilidade de implementação de políticas públicas. A mão invisível do mercado se convertia em uma verdadeira panacéia para todos os males de que padecia a civilização. Tudo se resumia a conceitos como preço, quantidade, oferta, demanda e equilíbrio.
Os espaços de resistência política, teórica e acadêmica a esse esmagamento concreto e ideológico das alternativas heterodoxas, desenvolvimentistas, estruturalistas, keynesianas, marxistas e outras revelaram-se bastante reduzidos.
A falsa sensação de uma hegemonia que se firmaria para um caminho sem retorno chegava ao cúmulo de apontar para tendências como o ”fim da História” e sugerir que não haveria outra alternativa possível que não fosse essa rota de um Adam Smith mal compreendido e copiado de forma rasteira. Assim, as próprias universidades e centros de pesquisa pelo mundo afora começaram a se render a tal força impositiva, compondo pacotes de ensino de economia de acordo com o modelo liberal, ortodoxo e conservador. As poucas tentativas de se propor um ensino crítico e alternativo ao praticado pelo “establishment” eram sistematicamente sufocadas, sempre em nome das chamadas “exigências do mercado”.
Hegemonia neoliberal e passividade frente à crise
Esse viés de análise operava em favor de uma determinada “ordem”, pressupondo sempre a inevitabilidade de fenômenos e características desse modelo, a exemplo da globalização, da dominação financeira e da cristalização do poder econômico em torno dos mega conglomerados empresariais por todos os continentes. Foram quase três décadas de implementação de políticas a favor dos processos de privatização, de desregulamentação econômica, de abertura desenfreada de comércio internacional entre países desiguais, de liberalização do fluxo de capitais em escala internacional, da tentativa de liquidação dos últimos vestígios de Estado de bem estar social e do esmagamento das resistências do movimento sindical em nome da suposta modernização de relações trabalhistas, entre tantas outras maldades cometidas.
No entanto, o desenrolar dos acontecimentos a partir da quebradeira das instituições do sistema financeiro norte-americano deu um novo colorido a esse quadro de suposta unanimidade. A crise evidenciou a incapacidade dessa entidade, endeusada como se possuísse poderes divinos – o mercado – em solucionar as dificuldades enfrentadas no âmbito da própria dinâmica econômica. Pouco a pouco foram sendo derrubados os mitos acerca da ilusão de que apenas a livre ação das forças de oferta e demanda fosse a redentora para toda e qualquer situação de desequilíbrio.
As agências de “rating” deveriam operar como mecanismos de alerta a respeito da qualidade das avaliações de desempenho das empresas na esfera financeira. Falharam completamente em sua missão de classificação de risco, pois davam notas ótimas a grupos que iriam à falência na manhã seguinte. A formação das bolhas especulativas não era considerado um problema relevante pelos “especialistas”, pois os instrumentos de mercado mais modernos terceirizavam os riscos envolvidos nas operações financeiras e de concessão de crédito. E todo esse vendaval de inovações de mercado, de natureza inequivocamente especulativa, não era objeto de regulamentação nem fiscalização por parte das autoridades monetárias.
Na verdade, a passividade dos responsáveis pela política econômica frente a tal instabilidade é que permitiu o aprofundamento da crise. O mercado não apenas foi incapaz de encontrar a solução – supostamente “racional” – que atendesse aos interesses da maioria das empresas e da população. As forças que mais atuavam em seu interior foram mais do que coniventes nessa caminhada em direção ao pântano. A fé cega no ambiente de plena liberdade, onde cada agente estaria buscando maximizar apenas seus próprios interesses, só retardou a chegada da necessária solução via Estado e terminou por elevar os custos sociais e econômicos quando do resgate do estrago anunciado.
Pragmatismo realista e a solução fora da ortodoxia
A crise atravessou o Atlântico, instalou-se no espaço europeu e provocou conseqüências dramáticas por todos os cantos do planeta. Face ao desastre instalado, o pragmatismo dos tomadores de decisão nos governos e dos próprios representantes do capital falou mais alto. Foram lançados ao mar todos os princípios até então alardeados como o supra-sumo da quintessência do liberalismo autêntico. Tendo em vista a incapacidade das soluções de mercado em redimirem o quadro doentio no qual se encontrava o capitalismo no início do novo milênio, passaram a ser recuperadas as fórmulas antes execradas como fonte de sacrilégio para qualquer cardápio genuíno do neoliberalismo.
E então, subitamente, uma série de temas considerados espinhosos voltou a freqüentar, sem nenhum constrangimento aparente, as pautas das reuniões.
Passou-se a decidir e implementar os subsídios do Estado, a política protecionista de comércio exterior, a intervenção pública para salvar as empresas em falência, a volta da regulamentação do governo nos mercados considerados mais sensíveis, a política de gastos orçamentários como elemento de estímulo à retomada da economia, entre outras medidas que até a antevéspera haviam sido demonizadas.
Em um primeiro momento foram os responsáveis pela condução da política econômica nos governos e os técnicos das organizações multilaterais que protagonizaram uma espécie de “mea culpa” mal disfarçada e uma reconversão envergonhada às propostas consideradas equivocadas e intervencionistas. Na seqüência, os próprios meios de comunicação começaram a oferecer espaço para a antiga heresia. Afinal, o pragmatismo salvacionista recomendava mandar às favas o purismo idealista e tratar de minimizar, o mais rapidamente possível, as perdas do sistema.
Ocorre que todo esse processo de reconversão foi muito rápido e norteado por interesses imediatistas. Não se tratava do resultado de um longo e penoso movimento de autocrítica a respeito dos equívocos cometidos em nome do Consenso de Washington e dos alicerces que estavam a embasar o credo neoliberal. Em boa parte das vezes, os atores inclusive eram os mesmos, apenas tendo adotado um discurso oposto ao que haviam entabulado até então.
Observa-se uma ausência de convicção sincera na mudança do referencial teórico dos indivíduos que conservaram razoável poder de decisão em postos estratégicos nas organizações relevantes no cenário internacional. Isso talvez ajude a explicar um pouco as razões pelas quais as instituições universitárias estiveram bastante apartadas desse processo de arejamento de reflexão e oxigenação de idéias.
Isso significa que as novas gerações de economistas e demais profissionais de áreas próximas continuaram a ser formadas nos padrões do modelo que estava condenado pela História. Porém, essa contradição provocada pela resistência em incorporar o processo de autocrítica para dentro dos muros das universidades encontrou seus limites. Professores, pesquisadores e estudantes começaram a se manifestar por uma abertura nos temas e nos enfoques no ensino da economia. Mas isso já assunto para o próximo artigo.
(*) Economista e militante por um mundo mais justo em termos sociais e econômicos.