Nós, o povo

A Revista de História chega a seu centésimo número e, em edição comemorativa, traça uma perspectiva incomum da formação nacional

Por Vivi Fernandes de Lima  

Tarsila do Amaral
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil

A exaltação à língua errada-certa do povo está em Evocação do Recife, de Manuel Bandeira, uma autoridade da língua portuguesa. Ele dominava como poucos, na escrita, o jeito brasileiro de falar. Mas o que o povo, esse linguarudo, tanto fala? Muitas vezes é o que não está nos livros.

 
Hoje, como afirma Marcus Carvalho no artigo que inaugura a edição nº 100 da Revista de História da Biblioteca Nacional, estuda-se tudo em história. “Estudamos da sexualidade ao cotidiano. Da cozinha da casa-grande à vida de trabalhadores portuários. De prostitutas a frades”, escreve o historiador. E esses estudos ultrapassam os marcos institucionais que, nos livros didáticos, normalmente dividem a disciplina em períodos determinados pela gente do poder. O peso institucional costuma ser tão grande que é mais valorizado que a noção de tempo. Não se estudam os séculos XVIII e XIX, e sim Colônia e Império. O recorte político, portanto, se sobrepõe ao que está na boca do povo.
 
Desde que a Revista de História é Revista de História, publicamos artigos que contemplam uma visão menos institucional, já que há uma produção intensa nesta linha na academia. Quando começamos a nos aproximar da produção da edição de número 100, o tema a ser escolhido se desdobrou em uma série de reuniões e ideias com esta mesma visão. E concluímos que esta edição comemorativa deveria ser feita sobre o que mais nos motiva a fazer a revista: o pé no chão. 
 
Por isso, organizamos este número de forma quase cronológica. “Quase” porque muitos assuntos são transversais a diversos períodos. Como reduzir nosso prato mais popular, o feijão com arroz,a um século ou a uma fase política? Não tem jeito, ele ultrapassa regimes e até mesmo o tempo, desconcertando cronologias lineares. O mesmo acontece com nossas festas populares, as produções musicais e o futebol.
 
Por outro lado, quando buscamos as origens e as influências da formação do Brasil, chegamos muito antes de ele existir. Mais precisamente, há mais de 10 mil anos, quando homens e mulheres com antepassados asiáticos já ocupavam parte do território que veio a se chamar Brasil, no Pantanal. Em cada período, há também personagens que se sobressaíram em seu tempo e depois foram praticamente esquecidos. O rei Gana Zumba, do Quilombo de Palmares, é um deles. Outros até são conhecidos como nomes de ruas, mas dos quais pouco se sabe, como é o caso de Maria Quitéria. E o estudante Edson Luís, morto a tiro pela polícia da ditadura civil-militar? Normalmente se passa pelo seu nome para se falar daquele momento político. Aqui ele também tem sobrenome, foto, documento de identificação e um contexto histórico.
 
Há ainda artigos que nos fazem reconhecer mais facilmente nosso dia a dia. No momento da produção desta edição, o bairro carioca da Pavuna estava inundado pela chuva. E não é que o artigo sobre as origens indígenas em nossa língua “adivinhou” esta tragédia? O texto é claro: pavuna significa lugar atoladiço. Os índios já sabiam disso, muito antes do prefeito…
 
Esta edição também é o momento de celebrar mais um ano de chegada às escolas públicas de todo o país por meio do convênio com o Ministério da Educação/ Fundo Nacional de Desenvolvimento para a Educação.
 
É a tentativa de levar um pouco da boca do povo para cada vez mais leitores.
Boa leitura e um ótimo 2014!
Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional