De onde vem a lenda?

 A Serpente Encantada e o Sarney democrático

Por Egberto Magno

Tancredo Neves, o presidente eleito, começou imediatamente a montagem de seu governo. Formou o seu Ministério com base na aliança que o conduziu à vitória no Colégio Eleitoral. Seria, portanto, um governo heterogêneo, composto por homens de tradição política mais democrática e de esquerda, por um lado, e de figuras mais conservadoras originárias da dissidência do PDS, por outro, afinal, foi esta amálgama que possibilitou a formação da Aliança Liberal. Com a doença de Tancredo, Sarney toma posse. Em seguida, a inesperada e trágica morte do presidente eleito comoveu o país de ponta a ponta. Sarney é efetivado no cargo.

Quando Sarney concluiu o seu mandato presidencial em 15 de março de 1990 a inflação era de 764,86%, batendo todos os recordes. Estava isolado politicamente e sem a menor credibilidade popular, muito diferente do início de sua gestão, quando adotou algumas medidas que trouxeram esperança à população, principalmente o Plano Cruzado (1986) que congelou os preços, criou o gatilho salarial e aumentou o salário mínimo. Na verdade, tudo não passou de um jogo de cena para garantir a vitória do PMDB nas eleições de 15 de novembro daquele ano: seis dias após eleger quase todos os governadores de seu partido, Sarney editou o Plano Cruzado II em que aumentava impostos e tarifas públicas e liberava os preços até então congelados. O povo se sentiu traído e no dia 25 de junho de 1987, no Rio de Janeiro, manifestantes apedrejaram o ônibus onde estava Sarney.

A lenda que credita a Sarney a um suposto espírito democrático repousa no fato de que, sob seu governo, entidades sindicais e estudantis até então proibidas foram legalizadas, a exemplo da União Nacional dos Estudantes (UNE), União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES) e centrais sindicais. Além disso, a legalização dos partidos comunistas em 1985 (PCdoB e PCB) “concedida” por José Sarney comprovaria suas convicções democráticas. Não há engano maior.

Na verdade, a legalização das entidades estudantis, das centrais sindicais e dos Partidos Comunistas se deu em razão do processo histórico marcado por mobilizações populares e sociais e pelo pacto político entre as forças heterogêneas que originaram o novo governo, a partir da condução política de Tancredo Neves. Não assegurar a institucionalização dessas organizações seria um “cavalo de pau” que colocaria o presidente Sarney em mãos lençóis, pois o nível de radicalização democrática naquela quadra histórica não o perdoaria, haja vista que se mantinha vivo o ambiente político e social que ensejou o início do processo de redemocratização do Brasil.

Sarney não concedeu a legalização. Ela foi conquistada através das amplas mobilizações que sacudiram o país na primeira metade da década de 80, momento no qual Sarney se opunha às diretas e a uma nova Assembleia Nacional Constituinte que restabelecesse a institucionalidade política, inclusive, com a legalização dos partidos comunistas, proscritos.

No decorrer do tempo, o governo foi ganhando contornos cada vez mais conservadores. Ainda em 1985 o presidente do INCRA José Gomes, da esquerda católica, demite-se por discordar dos recuos na reforma agrária. Os anos que sucederam foram de massacre de trabalhadores rurais no interior do país. Em fevereiro de 87 o PCdoB rompe com o governo Sarney e adota a campanha “Xô Sarney!”. Os anos de 1987/88 são marcados por uma guinada ainda mais à direita: assassinato de três operários na CSN Volta Redonda, surgimento do Centrão (articulado por Sarney) etc. Enquanto isso ocorre Greve Geral dos trabalhadores e manifestações por eleições para presidente em 88.

A articulação do “Centrão” na Assembleia Nacional Constituinte visava impedir uma Constituição avançada, mas as mobilizações populares garantiram uma Carta ainda assim progressista. Foi este agrupamento de direita que bancou mandato de 5 (cinco) anos para Sarney. As eleições deveriam ser realizadas em 1988, no entanto, o presidente manobrou para ampliar para cinco anos, e conseguiu.

Por razões de conveniência e oportunismo político Sarney se filiara ao PMDB. Ulysses Guimarães, um democrata convicto, sempre fiel ao “MDB de guerra”, viu-se constrangido a conviver, em uma mesma legenda, com uma figura que defendeu o AI-5, que não se opôs à tentativa de cassação de seu mandato em 1977 pela ditadura e fez de tudo para impedir a redemocratização do país. Por ironia do destino, “o senhor diretas” disputaria a presidência da República em 1989 e é largado à míngua por Sarney, obtendo pouco mais de 3 milhões de voto, ficando em 7º lugar, atrás até mesmo de Paulo Maluf.

Vieram Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique, Lula, Lula de novo e agora Dilma. E Sarney ao lado de todos: “Hay gobierno, soy a favor”.

Este é e sempre foi o “lendário democrata” José Sarney que, há poucos dias, dissera em entrevista na rádio de sua propriedade que no Maranhão a violência não ultrapassava os muros dos presídios.