Os papiros: milênios na palma da mão

A planta sagrada do papiro ainda existe, e é uma chave para estudar o antigo Egito: preservou sua escrita e trouxe sua cultura até os dias atuais

Por Lucas dos Santos Ferreira
 

Papiro

O antigo Egito costuma despertar interesse em crianças e adultos por seu forte apelo ao imaginário. Em sala de aula, o importante é apresentar de forma acessível as abordagens e as reflexões dos arqueólogos, cada vez mais profundas graças ao avanço da tecnologia. Uma interessante peça desse quebra-cabeça são os chamados papiros.

 
A nordeste do continente africano, o povo que surgia às margens do rio Nilo teve seu destino selado por uma necessidade tão básica quanto vital: criar uma superfície para a escrita produzida em grande escala. Isto porque o sucesso da produção agrícola, fonte principal da economia egípcia, dependia cada vez mais de organização, de registros dos balanços produtivos que pudessem facilitar o cotidiano e permitir o desenvolvimento econômico – sobretudo em uma época de crescimento político (3200-3000 a.C.), quando o baixo (Região Norte) e o alto Egito (Região Sul) foram unificados, dando início ao que hoje conhecemos como a Era dos Faraós.
 
Antes da criação dos papiros, os registros eram feitos em pedras ou em superfícies muito grossas, o que dificultava seu manuseio e transporte. Apesar de uma inscrição em pedra durar milhares de anos a mais que em um papiro, o foco dos egípcios era no dia a dia, na facilidade de comunicação e de registro das atividades realizadas pela sociedade.
 
Muitos papiros resistiram ao tempo, levando às civilizações posteriores vestígios dessa cultura que as antecede e dando origem à “papirologia”, ciência que estuda os papiros e se destina a preservar, interpretar, transliterar e traduzir seus dizeres.
 
Esse primeiro tipo de papel do mundo provém de uma planta muito abundante nas encostas do Nilo, de nome científico Cyperus papyrus, que pode alcançar até seis metros de altura. Era o símbolo do baixo Egito e considerada sagrada para aquela civilização. Com ela, os egípcios não só fabricavam a superfície para a escrita, como também casas, barcos, cordas, vassouras e sandálias. Quando os escribas utilizavam uma quantidade considerável de papiro, organizavam o registro em formato de livro: as folhas eram agrupadas em ordem, tornando possível a escrita sequencial de grandes textos. A união das “páginas” se dava quando ainda estavam úmidas, e a qualidade do papiro dependia da idade das plantas, do local de cultivo, da estação do ano em que eram colhidas e da seleção das tiras na hora do corte. Para se fabricar o papiro, corta-se o caule da planta em tiras, deixam-nas de molho em água por seis dias, depois as tiras são sobrepostas umas às outras, formando um entrelaçamento. Com a ajuda de uma prensa, elas se misturam, originando a base para a escrita. Para uma superfície lisa, faz-se o polimento com pedra-pomes.
 
Nunca saberemos o significado exato das palavras e das expressões antigas, mas podemos juntar os “pedaços” dessa história, combinar informações incorporadas e transformadas pelas civilizações posteriores para dar sentido aos vestígios que encontramos e, a partir dos quais, o conhecimento vai sendo produzido.
 
Os escritos dos papiros são hoje conhecidos como “hieróglifos”, palavra de origem grega que define qualquer texto considerado sagrado pelas civilizações antigas. Mas os próprios egípcios chamavam sua escrita de Medu Neter, “palavras dos deuses”. Ela era acessível a poucas pessoas, pois apenas escribas, sacerdotes e membros da realeza sabiam ler e escrever. Inscritos também em templos, pirâmides, sarcófagos e artefatos religiosos, os hieróglifos relatavam todas as crenças e os saberes da sociedade egípcia.
 
Os escribas não utilizavam espaços entre um sinal e outro, mas buscavam organizá-los de forma harmoniosa. Para identificar o início e o fim de uma frase, é preciso observar os determinativos – sinais que indicam o grupo ao qual a palavra pertence. O cuidado em referir-se a um dos deuses também era extremamente importante, conhecido como “inversão respeitosa”: os sinais atribuídos a eles eram escritos na frente, mas sua leitura se dava no fim. De modo geral, a escrita egípcia é formada por três tipos de sinais: fonogramas, usados para representar sons; ideogramas, que representam ideias; e os já citados determinativos. Há ainda símbolos que apontam a direção da leitura.
 
O mais antigo papiro matemático proveniente do antigo Egito é também o mais extenso, com 85 problemas. Conhecido como papiro de Rhind (nome do escocês que o adquiriu), ou papiro de Ahmes (nome do escriba que o produziu), encontra-se atualmente no Museu Britânico – na verdade, uma cópia (1650 a.C.) do original, que data aproximadamente de 1985 a 1795 a.C. Contém regras de aritmética, álgebra e geometria ainda hoje utilizadas em arquitetura, engenharia e contabilidade. Segundo os historiadores gregos Heródoto e Estrabão, foi a necessidade de calcular uma superfície de terra que levou os egípcios a descobrirem a geometria. Eles calculavam a área de um círculo dando ao π o valor de 3,16, ou seja, chegavam muito próximos do valor atual de 3,14159… Seus registros matemáticos permitiram a construção de pirâmides, templos e tumbas que resistiram ao homem e ao tempo.
 
Em relação à literatura, foram várias as contribuições egípcias. Entre elas, estão histórias populares, como O canto do Harpista, encontrado no Papiro de Harris 500, O conto dos dois irmãos e a História de Sinuhe, escrita cerca de 2 mil anos a.C. Há também tratados cirúrgicos, problemas matemáticos e uma infinidade de textos religiosos, como o Papiro de Westcar e os papiros do Livro dos Mortos. O conto dos dois irmãos, preservado no Papiro de D’Orbiney, atualmente no Museu Britânico, é uma história popular do fim da XIX Dinastia (1185 a.C.) e pode ser um bom começo para tratar dos egípcios em sala de aula. Escrito pelo escriba Ennana, relata a história de dois irmãos, Anúbis e Bata, que vivem juntos com a esposa de Anúbis. Um dia ela tenta seduzir seu cunhado, que a repudia. Com medo de que Bata relate o acontecido, a mulher muda a história, afirmando ter sido ela a assediada. Os irmãos entram em conflito e cortam a relação. A paz é restabelecida com a descoberta da verdade.
 
Para os alunos, pode ser interessante perceber como o conto produz questionamentos religiosos e morais que ainda hoje estão presentes no pensamento social. Como são definidas e de que maneira se constituem as regras gerais de nossos comportamentos? Estas são dúvidas que propiciam longa discussão. Vale a pena mostrar como o conto inspirou relatos posteriores, transmitidos até nossas gerações. Histórias como a bíblica de José e a mulher de Putifar (Gênesis 39:1-23) – na qual a mulher tenta em vão seduzir José, acusa-o de insultá-la e o faz acabar na prisão – produzem modelos de comportamento cultivados como parte da cultura de povos ao redor do mundo.
 
Uma dica para os professores interessados é levar para a sala de aula a planta que gerou os papiros – facilmente encontrável no Brasil, usada como adorno em muitas casas. Da primeira vez que levei um papiro produzido por mim para a escola, houve grande admiração, inclusive dos meus colegas, por estarem diante de técnicas milenares. O toque nas fibras unidas e entrelaçadas provoca o questionamento de como é possível termos herdado esse conhecimento de era tão remota. Essa experiência provoca naturalmente uma reflexão passado-presente-futuro, e o consequente respeito pelo passado como sensação permanente na vida. Colocar a chamada História Antiga em contato com o cotidiano dos alunos é uma das melhores maneiras de torná-los mais receptivos ao tema e às possibilidades de analogias em relação ao papiro – o ancestral de nossos livros, revistas e jornais.
 
A mescla do saber das civilizações ao longo dos séculos é um dos elementos fundamentais para uma consciência histórica sobre as trocas culturais que nos formaram. Ensina também sobre os tortuosos caminhos da comunicação e das tecnologias. Há muito mais a ser explorado nas areias do Egito e, certamente, revelações futuras acerca de papiros fornecerão novas dimensões e interpretações a essas histórias. O sol, que antes foi um deus, hoje ilumina sítios arqueológicos que podem e devem ser protegidos. E a contribuição do professor é organizar o passado egípcio em linguagem acessível aos alunos, possibilitando-lhe um novo futuro. O que outrora foi a maior fonte de sabedoria daquela civilização ainda vive, justamente por sua eficiência em comunicar-se atravessando mais de 5 mil anos.
 
(*) Lucas dos Santos Ferreira é autor do artigo A importância dos papiros egípcios para a
educação moderna (Centro Universitário Leonardo da Vinci, 2012).
Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional