A agenda do Brasil na Copa
O Brasil é o país do futebol e da biodiversidade e não pode perder a oportunidade de aproveitar a Copa como ferramenta para suas ações ambientais e instrumento eficaz para o desenvolvimento do futebol brasileiro, que hoje já contribui significativamente para o arranjo produtivo nacional e pode – se melhor administrado – gerar ainda mais empregos, renda e alegria para o Brasil.
Por Pedro Trengrouse Laignier de Souza*
Publicado 03/02/2014 17:27
A agenda da Federação Internacional de Futebol (Fifa) na Copa do Mundo não é necessariamente a mesma do Brasil. Sediar o maior evento de futebol mundial é um grande desafio, que não pode se resumir apenas ao atendimento das exigências da Fifa e a intervenções em infraestrutura de estádios, transportes, rede hoteleira, segurança pública e, é claro, numa seleção de jogadores altamente competitiva.
As manifestações populares que aconteceram no Brasil durante a Copa das Confederações aumentaram ainda mais a importância de uma agenda brasileira que aproveite a Copa do Mundo em defesa dos interesses nacionais.
Embora pesquisas feitas pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) apontem que 70% dos brasileiros querem a Copa do Mundo no país e apenas 5% das pessoas que foram às ruas protestar disseram ser contra os gastos públicos com a Copa, é nítido que governo, Fifa e patrocinadores ficaram assustados. O maior sinal disso é de que não houve sequer uma campanha publicitária festejando o enorme sucesso que foi a Copa das Confederações.
Todos emudeceram diante dessas manifestações, que evidenciaram fragilidades de um evento privado, que depende fundamentalmente de investimento público, e até agora não consolidou iniciativas capazes de transcender a agenda da Fifa e concretizar seu enorme potencial de transformação social e mobilização popular.
O Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil é de R$ 4,4 trilhões e todos os investimentos previstos na Matriz de Responsabilidades da Copa – que congrega as obras que o governo julga relevantes para o evento – estão na ordem de R$ 25 bilhões, destinados às mais diversas intervenções em áreas prioritárias de infraestrutura e serviços, como, por exemplo, aeroportos, mobilidade urbana, segurança, turismo, saúde e telecomunicações.
Diante destes números, é evidente que não houve nenhum contingenciamento no orçamento público noutras áreas em razão da Copa. O Programa de Aceleração do Crescimento II (PAC 2), por exemplo, investiu R$ 557,4 bilhões em infraestrutura até junho deste ano e, embora ainda aquém dos padrões recomendados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os recursos aplicados em educação e saúde quase triplicaram nos últimos 10 anos, com os investimentos em políticas sociais chegando a R$ 656 bilhões em 2012.
A rigor, no que diz respeito à Copa, essenciais mesmo são os estádios, cujos custos totais estão em R$ 7 bilhões, divididos em R$ 3,7 bilhões financiados pelo BNDES; R$ 2,7 bilhões a cargo dos governos locais; e R$ 612 milhões em investimentos privados. São nove estádios públicos e três privados e, ainda assim, considerando que os financiamentos do BNDES devem ser pagos pela operação privada das arenas, os investimentos públicos diretos representam menos de 40% do total.
E mais, não é verdade que estejam mais caros que nas últimas Copas. O estádio mais caro do Brasil (Mané Garrincha, em Brasília) custou pelo menos três vezes menos que Wembley e, segundo estudo de uma Organização Não-Governamental (ONG) dinamarquesa, os custos médios por assento no Brasil estão no mesmo patamar de USD 5 mil que Japão, Coreia e África do Sul, pelo menos 20% menores do que Green Point e Sapporo Dome, por exemplo.
Os novos estádios serão muito mais utilizados pelo futebol brasileiro que pela Fifa. Conforme dados coletados pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em 2009, para subsidiar a atuação da Secretaria Nacional do Futebol do Ministério do Esporte, o futebol movimentava, à época, R$ 11 bilhões/ano e gerava 370 mil empregos no Brasil, mas poderia movimentar R$ 62 bilhões/ano e gerar 02 milhões de empregos, principalmente com esta modernização dos estádios e os ajustes significativos no calendário, gestão e governança dos clubes.
O BNDES é, atualmente, o maior banco de desenvolvimento do mundo, superando inclusive o Banco Mundial em volume de operações. Desde 2008, quando as sedes da Copa do Mundo no Brasil foram anunciadas, o BNDES desembolsou no total mais de R$ 700 bilhões em financiamentos diversos. Trocando em miúdos, o investimento nos estádios representa muito pouco diante dos grandes números do banco, que poderia ousar bem mais para promover o desenvolvimento do futebol brasileiro enquanto atividade econômica relevante para o arranjo produtivo nacional e para a identidade cultural brasileira.
Um estudo da FGV mostra que a Copa pode quintuplicar o total de aportes no evento. Além dos recursos previstos na Matriz, a competição deve injetar R$ 112,79 bilhões na economia brasileira, movimentando o total de R$ 142,39 bilhões adicionais entre 2010 e 2014, com a geração de 3,63 milhões de empregos/ano e R$ 63,48 bilhões de renda para a população.
Ainda assim, é preciso enxergar o evento na perspectiva global da economia brasileira.
A maioria das obras relacionadas à Copa é realmente essencial para melhorar a infraestrutura do país. O Brasil é o país do futebol e já precisava de melhores estádios para desenvolver seu pleno potencial de geração de emprego e renda. O maior legado da Copa do Mundo para o Brasil seria mesmo uma profunda transformação no futebol brasileiro. Não seria razoável colocar problemas nacionais crônicos na conta da Fifa. Por outro lado, também não é razoável deixar que a Fifa se aproveite da boa vontade brasileira sem que contribua decisivamente para a solução de problemas que estejam ao seu alcance.
O país do futebol
Com dimensões continentais, economia pujante e organizador da próxima Copa do Mundo, o Brasil tem vocação para ser o laboratório da excelência no futebol mundial. A Fifa, a Confederação Brasileira de Futebol e o governo precisam estar sintonizados para promover iniciativas fundamentais ao desenvolvimento do futebol brasileiro, aproveitando esse momento especial da Copa.
A gestão anterior da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) encontrou a entidade completamente falida, a seleção brasileira desacreditada, um calendário totalmente desorganizado e o Clube dos 13 – União dos Grandes Clubes do Futebol Brasileiro – pronto para assumir a gestão das suas competições com o sucesso da Copa União em 1987.
Desde então, a seleção brasileira ganhou o maior número de títulos de sua história, as finanças da CBF se estabilizaram com receitas consideráveis e o Campeonato Brasileiro, que até 2002 nunca havia sido disputado dois anos seguidos com o mesmo formato, se consolidou e já comemora 10 anos de sucesso, contando hoje com quatro divisões.
Esta nova gestão da CBF encontra, portanto, um quadro totalmente diferente da anterior e precisa estabelecer uma nova agenda para o futebol brasileiro, assumindo sua responsabilidade como catalisadora de transformações estruturais, promovendo um verdadeiro choque de gestão, individual e coletivo, principalmente agora que os clubes se encontram enfraquecidos política e financeiramente.
A dissolução do Clube dos 13 aumenta ainda mais a responsabilidade da CBF, que passa a ser a única entidade capaz de liderar com legitimidade as discussões coletivas sobre calendário, Timemania, carga tributária, Lei de Incentivo ao Esporte, modelos comerciais para propriedades coletivas etc., compatibilizando interesses muitas vezes distintos como, por exemplo, os que tocam às Federações Estaduais e aos grandes clubes.
Aliás, cabe o registro: mesmo se o Clube dos 13 ainda existisse ou houvesse alguma Liga no Brasil, a CBF ainda estaria à cabeceira, como inclusive ocorre na Europa, onde o único membro permanente das Ligas é a respectiva Federação Nacional, com direito a veto e monopólio jurisdicional incontestável.
Os clubes brasileiros precisam mais do que nunca da liderança da CBF principalmente porque, além dos ajustes em sua própria gestão e governança, é fundamental repensar melhor o calendário de atividades do futebol brasileiro e sul-americano.
O Brasil tem 783 clubes de futebol e apenas 100 possuem atividade o ano inteiro. Em media, os 683 clubes que formam a base da pirâmide do futebol brasileiro jogam apenas 4,5 meses/ano. Esta atrofia impede o desenvolvimento pleno desse esporte no país, com um custo de oportunidade em torno de R$ 600 milhões/ano e 25 mil empregos na economia brasileira.
Enquanto isso, os grandes clubes do país sofrem com o excesso de jogos que os impede de competir com clubes europeus, não raro culpando campeonatos estaduais que, em muitos casos, são mais lucrativos que competições da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol).
A agenda do século passado trouxe a Copa do Mundo para o Brasil, com a CBF rica e os clubes pobres. É inadmissível pensar que Fifa, o governo e a CBF não aproveitem todo esforço para organizar a Copa do Mundo no Brasil de modo que possam enfrentar juntos os desafios do futebol brasileiro no século XXI, que são muito maiores e começam por otimizar o calendário, fortalecer os clubes e campeonatos estaduais, modernizando a gestão e a governança do futebol brasileiro.
O país da biodiversidade
É evidente que preparar e sediar uma Copa do Mundo causa, inevitavelmente, um considerável impacto ambiental, a começar pelo aumento das emissões na atmosfera de Green House Gases (GHG), causadores de efeito estufa.
Na Copa do Mundo de 2006, o Comitê Organizador, o Ministério do Meio Ambiente da Alemanha e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) estabeleceram um compromisso para medir o impacto ambiental gerado pela Copa e desenvolveram iniciativas capazes de neutralizar o equivalente a 100 mil toneladas de CO2.
Este compromisso foi batizado de Gol Verde e custou 1,2 bilhão de euros em iniciativas para, por exemplo, promover o uso responsável da água, com a utilização de águas pluviais e a instalação de mictórios secos nos estádios; o reaproveitamento e a reciclagem de materiais, com a utilização de copos retornáveis e coleta seletiva de lixo nos estádios; o transporte favorável ao meio ambiente, com o planejamento do transporte público e o incentivo à utilização de meios coletivos; o uso eficiente de energia, com o desenvolvimento de sistemas de gerenciamento; e a utilização de energia solar nos estádios. A África do Sul manteve este compromisso, aproveitando a experiência da Alemanha e reforçando a mensagem: “Esporte e Meio Ambiente caminham de mãos dadas”.
Além das estratégias de mitigação e compensação dos impactos ambientais implementadas com sucesso em 2006, a África do Sul tentou trabalhar programas sobre paisagismo e biodiversidade, que incluíam o treinamento de mão de obra especializada com foco em práticas e processos sustentáveis como, por exemplo, a compostagem da matéria orgânica proveniente da coleta seletiva dos estádios; o desenvolvimento de um código de responsabilidade e conduta para os visitantes e toda a cadeia produtiva do turismo; e a construção de um EcoCentro onde seria possível demonstrar formas práticas de vida sustentável.
Segundo estudo do Comitê Organizador Local da Copa do Mundo da África do Sul, realizado em parceria com o governo da Noruega, o impacto ambiental da Copa de 2010 foi estimado em 2.753.250 toneladas de CO2.
A discrepância entre as 100 mil toneladas de CO2 que se neutralizaram na Alemanha explica-se porque lá não foram consideradas emissões geradas por viagens de avião, que corresponderam a 67% das estimativas.
O Brasil, assim como a África do Sul, está distante dos grandes centros mundiais e não possui malha ferroviária ligando as sedes – bem distantes entre si –, o que aumentará consideravelmente o uso do transporte aéreo e, consequentemente, a emissão de gases causadores do efeito estufa.
Em 2014, o torcedor que quiser assistir a jogos em Porto Alegre e Manaus – as duas sedes mais distantes – fará uma escala em Brasília, pois não há voo direto – e causará mais do que o dobro de emissões de CO2 que seria emitido por quem voasse entre as duas sedes mais distantes em 2010, Cidade do Cabo e Nelspruit.
O custo total para neutralizar as emissões na África do Sul ficaria em torno de R$ 66 milhões. Esse valor, que será ainda maior no Brasil, não assusta se comparado com o volume de recursos relacionados à Copa. A agenda do Brasil na Copa deve ter como uma das prioridades a questão ambiental.
O povo na Copa
Ainda em 2010, a Fifa já tinha conseguido levantar mais dinheiro para a Copa do Mundo no Brasil em 2014 que para a Copa do Mundo da África, que aconteceria naquele mesmo ano. Só em 2011, a Fifa arrecadou com a Copa do Mundo no Brasil cerca de R$ 2 bilhões e a previsão é de que consiga mais de R$ 8 bilhões no ciclo 2010-2014.
As principais fontes de receitas para que a Fifa consiga tanto dinheiro com a Copa do Mundo são os direitos de transmissão, vendidos para TVs do mundo inteiro, e as cotas de patrocínios compradas por grandes empresas multinacionais, como, por exemplo, AmBev, Coca-Cola, Adidas, Sony, Hyunday, Visa, Itaú, McDonalds, Seara, Oi, Johnson & Johnson etc.
Estima-se que as TVs e os patrocinadores ainda invistam valor semelhante ao que pagam à Fifa para ativar suas propriedades na Copa do Mundo com publicidade, promoções e eventos próprios.
E apesar de tudo isso, quem mais coloca dinheiro na Copa do Mundo de 2014 é o governo, e muitas vezes sem considerar o custo de oportunidade.
Será que este mesmo investimento em outros setores traria melhores resultados?
Na mesma linha do que fazem os patrocinares para ativar seus direitos comerciais, será que o governo deveria fazer algum investimento adicional para aproveitar ao máximo todas as oportunidades da Copa do Mundo com uma agenda própria diferente da Fifa?
Como resolver esta equação: cerca de 03 milhões de ingressos, metade destinada aos patrocinadores e os demais à venda no mundo inteiro, para 200 milhões de brasileiros apaixonados por futebol e ansiosos pela Copa do Mundo no Brasil?
Em outros países, a solução encontrada para viabilizar a participação de um número cada vez maior de pessoas nessas competições é a realização de eventos de exibição pública dos jogos, aliada com uma série de shows e outras atividades de entretenimento. A Copa do Mundo da Alemanha em 2006 é um ótimo exemplo disso, com cerca de 3 milhões de pessoas nos estádios e 18 milhões nos eventos de exibição pública organizados pelo governo.
Em 2012, na Eurocopa, realizada pela União das Federações Europeias de Futebol (UEFA, sigla em inglês) na Ucrânia e na Polônia, 1,4 milhão de torcedores assistiu aos jogos nos estádios enquanto mais de 7 milhões de pessoas festejaram nos Fan Fests. Em Varsóvia havia a capacidade de 100 mil torcedores por dia e em Kiev o show de encerramento foi deninguém menos que Elton John, para 85 mil pessoas.
A questão é que a Copa da Fifa não é, necessariamente, a Copa do Povo e, embora os eventos de exibição pública dos jogos sejam ferramentas importantíssimas para inclusão social e segurança pública na Copa, indispensáveis ao controle das multidões e palcos para a promoção da cultura nacional, a previsão da Fifa é de organizar apenas 12 eventos gratuitos, porém cercados, um em cada cidade-sede.
É muito pouco! Ainda mais considerando que no Brasil há duas condicionantes muito relevantes: o forte interesse nacional pelo futebol e a vocação natural para eventos de massa de Norte a Sul do país, como, por exemplo: carnaval, micaretas, São João, Reveillon, Parintins, rodeios, exposições agropecuárias, Rock in Rio, Alzira Brandão etc.
Prova disso é que a Fifa reconheceu que a Fan Fest da Praia de Copacabana, que reuniu 600 mil pessoas com a melhor infraestrutura de todas, deveria ser a referência para 2014.
Com o devido planejamento e o poder de mobilização do futebol no país, os eventos de exibição pública dos jogos podem ser o símbolo da Copa 2014. A pergunta é: Quem deve ser responsável por isso?
Enquanto os estádios são prioridade para a Fifa, os eventos de exibição pública devem ser prioridade para o poder público, que está pagando a maior parte da conta da Copa e, da mesma forma que os patrocinadores fazem, precisa investir um pouco mais para “ativar” todo esse investimento e garantir uma agenda para seus próprios interesses.
O povo brasileiro não pode pagar a conta da Copa e ficar de fora da festa.
* Pedro Trengrouse é advogado, mestre em Humanities, Management and Law of Sports – FIFA Master, membro da Comissão Jurídica do Clube dos 13 e consultor da ONU/PNUD a serviço do governo federal para questões legislativas do desporto, em especial relacionadas à Copa do Mundo 2014 e ao futebol brasileiro.
**Publicado originalmente na revista Princípios, edição 127 (outubro-novembro/2013).