Meninos negros e pobres correm risco de morte nas ruas do Rio

Prender adolescentes pretos e pobres a postes ou calçadas, nas ruas do Rio, tem sido uma constante nos últimos meses, mas a onda cresceu desde que novos grupos de "justiceiros" passaram a agir, principalmente, na Zona Sul da cidade. Desde que um garoto de 15 anos foi preso, nu, por um cadeado de moto a um poste no bairro do Flamengo, na semana passada, os registros policiais já anotaram outros casos semelhantes.

Um garoto, de 14 anos, é preso após tentar furtar o telefone de uma senhora, em Copacabana, Zona Sul do Rio

Um deles aconteceu no início da tarde deste domingo (9), em Copacabana, quando um menor, de 17 anos, tentou roubar cordão de uma mulher. Ele foi perseguido, detido por comerciantes e, segundo transeuntes, agredido depois de ter os pés amarrados com um cordame. A cena causou espanto às pessoas que passavam no local e somente foi desfeita, mais de uma hora depois, com a chegada de uma viatura policial.

A crônica policial também registrou que, no final de Dezembro, um homem roubou o celular de uma mulher na saída do Túnel Martin de Sá, na Rua do Riachuelo, no Centro, em frente a uma cabine da PM que, segundo testemunhas, estava vazia.

"A vítima gritou por socorro e, em poucos minutos, pelo menos 20 pessoas cercaram o acusado, o imobilizaram e o agrediram. Em seguida, dois PMs chegaram e o conduziram algemado para a 5ª DP (Mem de Sá)", relatou a jornalistas o presidente da Associação de Moradores da região, Moisés Muniz, que teria filmado e fotografado a cena.

Pela filmagem, postada no Youtube, é possível perceber a ira dos moradores. “Deixa ele aqui, doutor”, grita um homem, em meio a xingamentos, enquanto os policiais conduzem o suspeito, assustado, à viatura.

"Ele já é conhecido da área, integrante da Gangue da Bicicleta. Sabe como é: não tinha polícia na área, então o povo teve que agir", justificou Moisés. Esta é a mesma tese compartilhada por todos aqueles que defendem os ‘justiceiros’ nas redes sociais.

O delegado da 5ª DP (Mem de Sá), Alcides Pereira, disse ‘ser comum’ suspeitos serem detidos por outras pessoas no Centro e depois conduzidos pela PM à delegacia.

"A recomendação é que a polícia seja sempre acionada, obviamente, sem o suspeito ser agredido", afirma a autoridade policial.

Assim como sociólogos, o padre Renato Chiera disse à reportagem do diário popular carioca O Dia, que acolhe menores infratores, condena os "justiceiros".

"Querem combater de maneira covarde as consequências, e não as causas do caos social", disse.

Em nota, a PM informou que, no caso do homem preso na Rua do Riachuelo, a cabine da corporação estava vazia, porque policiais foram “acionados para ocorrências”.

Menor conta que foi agredido a chutes e teve os pés amarrados

O menor detido por comerciantes, em Copacabana, relatou na 13ª DP que antes de a PM chegar, foi agredido a chutes e, em seguida, teve os pés amarrados. Segundo testemunhas, ele foi pego na Rua Leopoldo Miguez.

"Me chutaram e amarraram meus pés com barbantes, mas consegui me soltar. A sorte é que a polícia chegou a tempo – relatou o adolescente, que responderá por furto.

Segundo a polícia, ele estaria com outro jovem, que acabou fugindo com o cordão roubado.
"Deram um ‘sacode’ nele antes de a PM chegar. Todo dia tem esse tipo de ação de criminosos aqui. Ninguém aguenta mais isso", disse um segurança que trabalha na região e preferiu não se identificar para os repórteres d’O Dia.

Na madrugada de sábado (8), mais um caso de violência semelhante: dois rapazes – um deles menor de idade – foram espancados na Penha, depois de terem roubado celulares de outros dois jovens na Rua Quito. Luiz Felipe Rodrigues da Silva, 23, e seu comparsa adolescente precisaram ser atendidos no Hospital Souza Aguiar, antes de ser conduzidos à 22ª DP (Penha).
Violenta e autoritária

O instinto de vingança de parte da população foi destacado na terça-feira pelo tabloide britânico ‘Daily Mail’, que publicou a foto do adolescente agredido no Flamengo com o título: “Vigilantes brasileiros pegam ‘ladrão’”. Na reportagem, são citadas as discussões contra e a favor dos ‘justiceiros’ na internet.

A delegada Monique Vidal, titular da 9ª DP (Catete), investiga se os 14 jovens detidos pela PM no Aterro do Flamengo na segunda-feira fazem parte da gangue. Um deles, Lucas Felício, admitiu na 9ª DP que tem agido em grupo na caça a supostos infratores, mas disse que não está envolvido na agressão ao menor. Na noite passada, ele retirou do ar sua página no Facebook . “Porrada na vagabundagem mesmo”, comentava, entre outras declarações.

"Historicamente, a sociedade brasileira é violenta e autoritária. A gente vive não só uma certa fragilidade do Estado em trabalhar articuladamente para evitar a impunidade como também há no poder público uma certa leniência (suavidade) com a violência do justiceiro, afinal de contas, isso não é uma coisa nova. Além disso, a sensação geral de insegurança acaba muitas vezes por endossar este tipo de ação para parte da população", afirmou a jornalistas a doutora em sociologia e professora Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Paula Poncioni, de 54 anos.

Após ser torturado e amarrado a um poste pelo pescoço com uma trava de bicicleta a um poste no Flamengo, o adolescente E., de 15 anos, buscou refúgio num ambiente que se tornou familiar para ele: um abrigo municipal. Filho de um traficante morto quando ele era um bebê e proibido por quadrilha de milicianos de voltar à casa da mãe por furtar uma furadeira, em Campo Grande, na Zona Oeste, ele virou figurinha carimbada no abrigo. Só nos últimos três meses, procurou o local em busca de uma cama para dormir em cinco ocasiões.

A última foi no sábado. E, mesmo depois de ter sido torturado, não fez alarde. Só foi reconhecido ontem por uma diretora. Então, repetiu aos funcionários do abrigo a mesma versão que contaria ontem à noite na 9ª DP (Catete). Ele disse que estava com três amigos por volta das 2h30, a caminho de Copacabana, quando foi abordado por 30 homens. Eles estavam com as motos junto ao meio-fio e faziam musculação numa academia na Enseada de Botafogo.

Ele e outro amigo não fugiram porque foram ameaçados por uma pistola 9 milímetros — uma ‘nove nariguda’, como descreveu na delegacia. Em meio às agressões, o amigo dele escapou. E, antes de ser preso, disse ter ouvido: Você vai pagar pelos que fugiram!

Nenhum dos 14 jovens detidos na segunda-feira passada, sob a suspeita de integrar um grupo de ‘justiceiros’, foi identificado pelo adolescente em depoimento. Eles foram pegos enquanto dois rapazes pediam socorro. Sem antecedentes criminais, eles serão investigados por formação de quadrilha e por corrupção de menores.

Enquanto isso, a delegada Monique Vidal busca vítimas do adolescente agredido, que é menor infrator e tem passagem pela polícia por roubo, furto e lesão corporal.

"Investigar roubo a pedestre é complicado, porque é uma população flutuante. Se houvesse o policiamento ostensivo facilitaria nossa vida", disse.

Fonte: Correio do Brasil