Bombardeio de Guernica: 77 anos depois
Guernica (ou Gernika, em euskera), capital cultural e histórica do País Basco, região dividida entre a Espanha e a França e com longo histórico separatista, amanheceu no dia 26 de abril de 1937 esperando apenas mais um dia normal, pese a tensão pela guerra que se aproximava cada vez mais da cidade.
Por Raphael Tsavkko Garcia, de Bilbao para a Opera Mundi
Publicado 27/04/2014 10:51
Guernica (ou Gernika, em euskera), capital cultural e histórica do País Basco, região dividida entre a Espanha e a França e com longo histórico separatista, amanheceu no dia 26 de abril de 1937 esperando apenas mais um dia normal, pese a tensão pela guerra que se aproximava cada vez mais da cidade.
Além dos cerca de 5 mil habitantes, a pequena vila encontrava-se lotada de refugiados de outras cidades próximas e de combatentes a caminho de Bilbao, maior e principal cidade da região, para defendê-la dos ataques das tropas de Francisco Franco aliadas às tropas de Hitler e Mussolini.
Às 15h30 a calma da cidade foi quebrada pelo som de sirenes e pelos gritos desesperados da população que buscava refúgio sabendo que se avizinhava um ataque. Este não seria o primeiro contra a população civil de uma cidade basca, dado que no mês anterior Durango havia sido cruelmente bombardeada, custando a vida de quase 300 civis.
Imediatamente após as sirenes, o primeiro ataque começou, por ordem do tenente coronel alemão Wolfram von Richthofen, da Legião Condor. Um Dornier Do 17 alemão e três Savoias S-79 italianos lançaram toneladas de bombas em uma das pontes da cidade e na estação de trem, atingindo casas e a igreja de São João. Pouco depois, mais três aviões alemães He-111 despejaram sua cota de bombas na cidade.
Às 18h, um novo bombardeio, ainda mais pesado, levado a cabo por 19 Ju-52 alemães que lançaram não apenas bombas explosivas, mas incendiárias, com o objetivo de dizimar a cidade e todos dentro dela. Como se não bastasse, veio um quarto ataque, desta vez com metralhadoras.
A quantidade de fumaça resultante dos bombardeios e do fogo que consumia a cidade tornava difícil a identificação de alvos específicos, o que propiciou ainda mais destruição à medida que bombas e balas eram descarregadas a esmo.
Entre 150 e 300 bascos foram mortos, centenas de outros foram feridos e mutilados. E os horrores deste ataque foram contados ao mundo pelo jornalista George Steer, para o The Time de Londres, que visitou a vila pouco após sua destruição, e por Pablo Picasso em seu famoso quadro "Guernica", no qual coloca em uma tela todo o sofrimento e desespero das vítimas inocentes e os horrores da guerra.
Poucos edifícios continuaram em pé na cidade, mas intactos restaram apenas os prédios das Juntas (governo local) e a simbólica Árvore de Guernica, o símbolo máximo da identidade basca e que, reza a lenda, é replantada há milhares de anos no mesmo local como símbolo da resistência e sobrevivência do povo basco.
Quem visita a cidade hoje não encontra marcas visíveis desta destruição, a cidade foi reconstruída e continua a ser hoje um polo de cultura de grande importância, mas é possível sentir no ar o peso histórico dos acontecimentos de tantos anos atrás. No Museu da Paz de Guernica (Gernikako Bakearen Museoa) encontram-se as marcas da guerra preservadas para que permaneçam sempre na memória da população e dos visitantes, como o chão preservado de uma casa e seus escombros, com os pertences dos habitantes espalhados, rasgados e queimados.
Hoje este bombardeio completa 77 anos. E continua sendo o exemplo máximo da covardia, do desrespeito pela vida e o quadro mais vívido dos horrores da guerra. Não são os números em si que impressionam – o bombardeio de Durango possivelmente custou ainda mais vidas e outras cidades bascas, como Biarritz, no País Basco francês, foram também alvo de bombardeios-, mas a crueldade do ataque a uma vila inteira apenas com o intuito de dar um recado: Se rendam, ou as consequências serão ainda maiores.
E foram.
Após o bombardeio a guerra ainda seguiu por algum tempo, com o cerco a Bilbao e os últimos suspiros da República Espanhola e da efêmera República Basca, cujos líderes foram depois ao exílio (os que tiveram sorte) e muitos foram presos, torturados e mortos no período imediatamente posterior à Guerra Civil Espanhola.
Após Guernica o que se seguiu foi genocídio cultural do povo basco sob o regime Franquista. A língua basca foi proibida, seus costumes tornados ilegais, seu modo de vida criminalizado. Até 1976 os bascos foram perseguidos, humilhados quando não torturados e mortos, mas sempre se recordavam de Guernica e tinham razões para persistir, para um dia poder homenagear, livres, seus mortos e feridos.
A Ditadura de Franco foi cruel não apenas com os bascos, mas com catalães, galegos e, sem dúvida, com os espanhóis. Milhares foram torturados e mortos, desaparecidos, jogados em covas rasas para nunca serem identificados.
Guernica é uma lembrança viva e forte dos horrores que persistiram por anos a fio e que ainda permanecem latentes em uma Espanha incapaz de lidar com os crimes franquistas, com negativas persistentes à que se investigue o passado e que os culpados pelos crimes do franquismo sejam punidos. Uma Espanha considerada uma prisão de nações, que ainda hoje impede o livre exercício do direito de autodeterminação de povos que foram massacrados e que, porém, não se submeteram.
Algumas feridas ainda permanecem abertas após décadas de repressão, de resistência (ora pacífica, ora armada) e de luta por memória, reconhecimento e, da parte de muitos bascos, por independência – tendo em Guernica o centro emocional desta reivindicação.
Os 77 anos de Guernica são também os 77 anos de um dos períodos mais terríveis da história moderna: o prenúncio da Segunda Guerra, o teatro onde foram feitos os primeiros ensaios para a imensa repressão que se seguiu e para os horrores que jamais serão totalmente superados.