Evento polêmico na UFF é investigado pela Polícia Federal

Após polêmica e abertura de investigação pela Polícia Federal, chefe do departamento do Polo Universitário de Rio das Ostras (Puro) da Universidade Federal Fluminense (UFF) afirma que houve preconceito e má interpretação do evento “Xereca Satanik”. O fato despertou controvérsias.

Por Sheila Fonseca*, especial para o Vermelho

Depois da confirmação de abertura de inquérito, a Polícia Federal esteve nesta segunda-feira (2) no Campus da Universidade Federal Fluminense (UFF) em Rio das Ostras, com o delegado da Polícia Federal em Macaé, Júlio César Ribeiro, e peritos técnicos da Polícia Civil. A equipe foi apurar denúncia de supostos crimes que teriam sido cometidos dentro do Polo Universitário de Rio das Ostras (Puro), durante o evento com performance “feminista” denominado “Xereca Satanik” no último dia 28. Júlio César Ribeiro afirmou que caso os delitos sejam comprovados, os responsáveis serão punidos.

Segundo denúncia de alunos presentes na festa, realizada pelo curso de Produção Cultural integrando as atividades do “Seminário Corpo e Resistência e 2° Seminário de Investigação e Criação do Grupo de Pesquisas/CNPq Cultura e Cidade Contemporânea”, teria ocorrido ritual satânico, com uso de bebidas alcoólicas, drogas, pratica de sexo e performances de automutilação. Alunos registraram imagens e publicaram em redes sociais dando início à polêmica sobre a possível má utilização do espaço da Universidade. As bebidas alcoólicas utilizadas no evento supostamente teriam sido guardadas no prédio anexo Multiuso.

A artista performática Raíssa Vitral, do Coletivo Coiote, se apresentou no evento junto a outras mulheres, com uma polêmica performance de automutilação, em que teve a vagina cortada com bisturi, introduzida a bandeira do Brasil e depois costurada. Raíssa esteve envolvida em outra polêmica em 2013, quando fez uma performance nudista na praia de Ipanema introduzindo um crucifixo do ânus de outro performer durante a “Marcha das Vadias”, em protesto ao evento católico Jornada Mundial da Juventude.

O posicionamento da Universidade e de participantes

Procurados pela reportagem, os organizadores do evento e artistas participantes da performance decidiram não se pronunciar antes que a UFF desse seu parecer. Rosane Fernandes, da assessoria de Comunicação da UFF, afirmou que foi instaurada uma sindicância interna para apurar desvios de conduta com prazo de 30 dias e somente após a conclusão haverá a divulgação de uma posição oficial.

O Vice-reitor Sidney Mello divulgou nesta quarta-feira (3) nota oficial em que também defende a apuração dos fatos ressaltando que a universidade não pactua com atividades que desvirtuem seu caráter acadêmico: “A Universidade Federal Fluminense (UFF) não compactua com qualquer tipo de atividade que, desvirtuando de sua essência institucional, extrapole os limites do razoável, atentando aos valores da liberdade e igualdade, ou ofendendo a dignidade da pessoa humana. Desta forma, visando a contribuir com as investigações em curso, sem prejuízo de outras medidas administrativas ou judiciais a serem adotadas, solicita-se àqueles que, de alguma forma, tenham presenciado possíveis ilegalidades cometidas junto ao espaço público da universidade, que entrem em contato com a Ouvidoria da UFF e forneçam informações que possam contribuir para a apuração precisa dos fatos.”

Daniel Caetano, Chefe do Departamento do Puro – UFF rebate as críticas e defende a legitimidade do evento. Em entrevista, confirma que conhecia os participantes das apresentações e que a festa ocorreu com a chancela do departamento: “Sim, eu os conhecia. O evento fez parte de uma atividade de disciplina do curso de Produção Cultural, no final de um seminário.”

Segundo Daniel, formou-se uma rede de falsas notícias dando início à polêmica: “Não, a festa não teve nenhum caráter religioso. Isso é lorota. O nome do evento era provocativo, quem esteve lá sabia que não havia nenhum caráter religioso. Também não houve bebidas. Qualquer pessoa pode ter chegado com alguma bebida, mas se alguma venda de bebidas de fato ocorreu, não foi à vista do público. Tendo em vista que os mesmos que divulgaram essa versão falaram em satanismo, tendo a acreditar que pode ser lorota. O mesmo, é claro, vale para essa história de atividades sexuais".

O chefe do departamento também desmente as afirmações de que haveria sido utilizado material cirúrgico e um crânio humano “As agulhas pertencem aos artistas que vieram fazer a performance. O crânio é um objeto de teatro, não é real. As pessoas precisam parar de acreditar em qualquer abobrinha que leem na internet.”.

Carlos Eduardo Giglio, estudante do curso de Produção Cultural e produtor da empresa Guerrilha Produções Teatrais, reclama da abordagem de parte da imprensa, diz ter sido vítima de preconceito e denuncia que pessoas estão sendo ameaçadas “Eu não organizei a festa, mas fui. Querem criminalizar todos os alunos e alunas da UFF Rio das Ostras e, principalmente, o curso de Produção Cultural. Não vou levantar questões estéticas muito menos fazer qualquer tipo de defesa do evento ou da performance. A questão é muito maior do que as pessoas imaginam. Minha filha não está falando comigo pois ela acredita que fui eu o organizador do evento. É isso que estão dizendo para ela. Pais e mães de alunos e alunas estão horrorizados e achando que todo mundo tá envolvido. Muita gente está indo embora. Meninas andam recebendo ameaças. Jornais distorceram e amplificaram tudo. É preciso, no mínimo, que as pessoas se lembrem dos recentes casos de condenações via redes sociais, que inclusive acabaram em morte por linchamento. Me dói saber que, como minha filha, familiares de outras pessoas tenham sido vítimas de um sensacionalismo barato. De informações truncadas. De conceitos e preconceitos que criminalizam e negam o direito real de defesa de vítimas e acusados. Enquanto isso seguem os estupros, as violências, as micro-violências contra as mulheres e outras minorias.”

O estudante diz que conhecia o trabalho da performer Raíssa Vitral e que o objetivo da era provocar: “Conhecia Raissa Vitral de nome e por vídeos que vi, quando soube que ela se apresentaria na UFF.

Costumo pesquisar os eventos, artistas e espetáculos a que vou. Ela é das mais conhecidas performers do país. A menção às atividades sexuais e satanismo foi uma provocação ao público. As pessoas que organizaram o evento sempre fazem provocações assim para levantar debates sobre sexualidade, proibicionismo, preconceitos. Vitral faz suas performances como forma de protesto e resistência à violência, ao machismo, às micro-violências diárias contra a mulher e lança mão do seu próprio corpo para isso. E o faz se utilizando da dor e flagelação, principalmente sexual. Não é minha praia. Prefiro a poesia, as intervenções gráficas urbanas. É como trabalho. Mas é como ela pesquisa e age.”, afirma o estudante.

Extremismo revela necessidade de diálogo

Em meio à polêmica se discute o aumento da exploração do potencial estético extremista de manifestações e performances como a da artista Raissa Vitral e os impactos gerados na sociedade e no indivíduo.

Leandro Santos, psicanalista freudiano, Professor de Psicologia da Faetec e Psicólogo da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Município de Magé (RJ), aponta que o feminismo passa por um processo de transformação e atitudes extremas que são um reflexo da busca de ajuste da sociedade contemporânea: “Penso que esta questão do feminismo encontra-se atualmente diante de um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que há uma reafirmação do poder feminino, há também um enfraquecimento deste poder. A mulher contemporânea parece querer buscar sua afirmação pela via da exterioridade, deixando o campo da reafirmação interna enfraquecido. O incremento das cirurgias plásticas e a cultura da “mulher sarada” são fenômenos crescentes que confirmam esta situação. E isto se configura como um paradoxo na medida em que esta forte necessidade de se representar pelo exterior nos aponta para uma fraqueza igualmente forte de reafirmação interna. Diante disso, o caminho da concretude parece ser uma via mais interessante para se estabelecer o contato com o outro. Penso que a mulher e o feminino permanecem como um paradoxo enigmático assim como o fora para Freud no início do século passado”, reflete.

“Acredito que este tipo de performance apresenta uma mensagem criptografada, que ao ser analisada revela o paradoxo. É curioso que os dois atos (de cortar e costurar o corpo) se colocam de alguma maneira como antagônicos e paradoxais. Abrir um buraco no corpo de uma mulher (a partir de um corte com bisturi) e ao mesmo tempo tapar e costurar um buraco do corpo de uma mulher (a vagina) me faz pensar na necessidade do estabelecimento de uma relação concreta com o mundo. O “estar aberta” e o “estar fechada” para o outro só consegue encontrar um lugar na literalidade da expressão corporal. ”, completa.

Leandro alerta que o conceito de “coletividade” conferido por grupos ou coletivos sociais pode dar vazão a atos extremos tendo como reflexo a carência de elaboração interna: “Acredito que a concretude oferecida pela coletividade pode apresentar ao sujeito um meio de dar vazão a algo que não conseguiu encontrar um caminho de elaboração interna, psíquica. Penso que há, de modo muito caricatural, uma necessidade de afirmar o que se é por meio do ato. Quando um sujeito destrói, lincha e se automutila acredito que há uma destruição, um linchamento e uma mutilação interna, em seu interior existencial, que precisa se exteriorizar para confirmar e sustentar uma existência. Acredito que tal condição existencial é a base necessária para que estes atos sejam colocados em cena. Desta forma, acredito que a ‘patologia social’ poderia apresentar uma face de desvelamento de uma ‘patologia individual’”

Penso que a questão da automutilação nos coloca diante de uma situação de extrema violência. Acredito que as noções de trauma, narcisismo, pulsão de morte e compulsão à repetição seriam as ferramentas mais interessantes para se pensar esta questão. De modo muito sucinto, diria que estas situações contam com uma extrema dificuldade em estabelecer um controle diante do imperativo mortífero dos impulsos destrutivos. Há uma espécie de curto-circuito, onde algo da ordem de um excesso traumático vai encontrar o caminho de descarga em um ato agressivo contra si, em detrimento de um trabalho de elaboração psíquica”, revela.

O psicanalista aponta que o caminho mais produtivo para reflexões e manifestações coletivas é o diálogo “O encontro com a diferença será sempre uma forte fonte de angústia. Acredito que fazer desta angústia um motor criativo é um caminho para a abertura de um diálogo. Diálogo necessário para permitir ao sujeito encarar a diferença como algo enriquecedor e não como algo ameaçador. Quando a diferença deixa de ser uma ameaça, abre-se a possibilidade de uma efetiva relação com o outro.”

*Sheila Fonseca é jornalista, colaboradora do Vermelho