Rosana Vilar: Esperança para 
o ensino indígena

Uma nuvem encobriu o Sol na Fazenda Experimental da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e, rapidamente, todas as mulheres da classe, composta principalmente de homens, saíram da sala em direção aos dormitórios. A chuva chegava e as roupas estavam no varal.

Por Rosana Vilar*



Indígenas

O local, a 40 quilômetros de Manaus, foi adaptado para receber o primeiro curso de Licenciatura em Formação de Professores Indígenas da universidade. Durante 90 dias por ano, 60 professores indígenas abandonam suas tribos e viajam, por até quatro dias, para a capital para garantir o acesso ao Ensino Superior. Durante esse período, é na “Fazendinha” que encontram um lar e a oportunidade de uma vivência acadêmica “completa”, como dizem.

A formatação do curso, modulado e adaptado, é resultado de quase dez anos de estudos, experiências, assembleias e discussões políticas que ajudaram a subsidiar as novas Diretrizes para Formação de Professores para a Educação Indígena, aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) no início de abril. O movimento que está prestes a surgir é visto pelos indígenas como a primeira chance real de mudança nas relações sociais com a sociedade não indígena, em que o conhecimento surge como agente crucial para o desenvolvimento econômico e cultural.

A Ufam possui atualmente dois cursos de Licenciatura Indígena nesses moldes, um voltado às grandes áreas do conhecimento, que recebeu este ano a primeira turma de estudantes em sistema de internato, na fazenda experimental, e outro, no município de São Gabriel da Cachoeira, focado em Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável.

O duro caminho da educação

Um dos maiores problemas enfrentados pelos povos indígenas é a falta de acesso aos instrumentos públicos. Poucas aldeias possuem escolas e em quase nenhuma chega até o nível médio. Para garantir a continuidade da educação, é preciso deixar as aldeias, para onde apenas uma minoria retorna.

“O governo federal foi empurrando com a barriga a competência da educação indígena para os estados, que por sua vez empurraram para os municípios. Os municípios não têm recurso, então a educação indígena é uma meia-sola, uma enganação. Com isso, vários jovens saem das aldeias para estudar e muitos se perdem no caminho”, avalia o antropólogo e cientista político Ademir Ramos.

De acordo com dados do Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem 896.917 indígenas no Brasil. Segundo o Censo Escolar de 2013, 3.050 escolas indígenas no País atendem a 236.860 alunos da Educação Básica. Apenas 9.756 estudantes declarados indígenas cursavam o Ensino Superior, em 2011.

Mario dos Santos Cruz, da etnia cambeba, é um dos alunos que cursam a Licenciatura Indígena da Ufam. Professor há seis anos, chegou a estudar na Universidade Estadual do Amazonas (UEA), mas não seguiu adiante. “Não consegui superar as dificuldades geográficas, financeiras e todos os aspectos envolvidos em sair da aldeia”, disse.

O jovem de 25 anos é um do poucos professores bilíngues da região do Médio Solimões, no Amazonas, com fluência da língua cambeba. Para estudar na Fazendinha, Mario tem de se licenciar de suas aulas e de um projeto de vida. “Tem 200 pessoas na comunidade e com o trabalho que estamos fazendo na escola, são 70 alunos conhecedores da língua. As crianças são o primeiro alvo do bilinguismo, para que a língua retorne por meio delas.”

Cursar a Licenciatura também não tem sido fácil para o casal de professores da etnia cocama, Ronaldo Ferreira e Maria Nicean, que ocupam um dormitório coletivo na Fazendinha com a filha de 2 anos. “A gente quer a melhora para o povo da gente, o reconhecimento. Então temos de fazer esse esforço, para ter um representante indígena, com conhecimento de mais alto nível”, justifica Maria.

De acordo com a coordenadora do curso, professora Elciclei Faria, a licenciatura em Nível Superior foi uma demanda urgente, levantada pelos indígenas, para suprir a imensa demanda por professores capacitados nas aldeias. Só no Amazonas, estima-se que sejam necessários pelo menos 2 mil professores indígenas para atender a todas as comunidades, calcula Elciclei.

No modelo da Fazendinha, os indígenas são levados para o ambiente acadêmico, onde participam de aulas e seminários em período integral. Durante os cinco anos do curso, são abordados temas gerais das grandes áreas do conhecimento, com turmas de Letras e Artes, Ciências Humanas e Sociais e Ciências Exatas e Biológicas, além de matérias especiais, formatadas de acordo com a necessidade das etnias, como Saúde e Qualidade de Vida e Gestão Territorial.

“Para eles é muito difícil sair das aldeias e cursar uma Licenciatura de quatro anos, onde ele vai ser formado em uma disciplina apenas. Com esses cursos você facilita o acesso, pois eles estudam em sistema modular. Além disso, a vantagem de ficar aqui é que eles estão mais próximos da universidade, para ir à biblioteca, fazer visitas, intercâmbio com outros alunos e pesquisadores, e isso abre muitas possibilidades. Antes, eles ficavam isolados”, explica a coordenadora.

Convivem na Fazendinha atualmente indígenas das etnias ticuna, cambeba, canamari, miranha, mura, maioruna, aripuanã e cocama, vindos de seis municípios do Território Etnoeducacional do Médio Solimões.

Os dormitórios, que antes possuíam beliches, tiveram de receber ganchos para redes, em respeito à maneira tradicional de dormir dos indígenas, e a alimentação é diferenciada para evitar problemas de saúde. “Tem de ter muito peixe e farinha grossa. A comida também não pode ser muito temperada, pois eles não estão acostumados”, explica o diretor da Fazendinha, Leandro Amorim Damasceno.

A única demanda ainda não atendida foi a construção de um campo de futebol. “Eles gostam de jogar uma bolinha nos intervalos”, diz Elciclei.

Diretrizes para a educação superior indígena

O diretor de políticas afirmativas da Ufam, Gersen Baniwa, participou das discussões que nortearam a elaboração das diretrizes na década de 1990. Também organizou a primeira Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena, em Luziânia, Goiás. A formação de professores indígenas foi um dos focos do evento, ocorrido em 2009. Em 2 de abril de 2014, o documento que estabelece as regras para Licenciatura Indígena foi aprovado pelo CNE. “Boa parte dessas diretrizes já estava sendo aplicada de forma fragmentada, cada instituição adotava metodologias próprias. Com essa normatização, as orientações serão uniformizadas, o que faz com que tenham maior força institucional”, explicou Baniwa.

O documento ainda aguarda homologação. Baniwa, porém, espera que o resultado de quase duas décadas de experiências seja anunciado em breve. Segundo ele, mais de 50 mil indígenas participaram diretamente da elaboração do documento nas conferências nacionais e regionais, que também aconteciam em escolas indígenas por todo o País.

Uma das exigências é o desenvolvimento de metodologias de pesquisa. Outra característica desse documento é a inclusão de um tratamento holístico articulado às grandes discussões indígenas.

“Educadores e alunos indígenas precisam ter um mínimo de discussão sobre território indígena. É muito difícil que as crianças tenham esse ensino, então é preciso contribuir para que as comunidades entendam as questões territoriais, assim como as questões de meio ambiente e de segurança alimentar”, observa.

A ideia é uniformizar as diferentes metodologias e a grade curricular e estabelecer parâmetros básicos mínimos para garantir qualidade ao processo de formação. “Alguns cursos privilegiavam os conhecimentos tradicionais, em detrimento dos conhecimentos universais e científicos. Outros faziam o contrário, privilegiavam os conhecimentos acadêmicos em detrimento dos conhecimentos indígenas”, relata o professor.

Empoderamento cultural

Mariano Fernandes foi professor da Educação Básica por nove anos, na década de 1980, antes de se tornar líder comunitário. Não teve, porém, a chance de realizar um curso superior, abandonando os estudos no 2º ano do Ensino Médio. “Formei família e tive de trabalhar”, afirma.

Hoje ele é responsável pela supervisão dos alunos e pela manutenção da ordem no dormitório da Fazendinha. É um dos ouvintes mais interessados. Para ele, o curso traz um mundo de novas possibilidades aos povos indígenas.

“Muito da política indigenista está focado no assistencialismo. Eles chegam lá e dão um motor de luz, uma antena parabólica, e o povo fica contente. Mas nós queremos ter conhecimento para garantir a nossa existência. Os livros que a gente lê até hoje são os outros que escreveram, queremos contar a nossa própria história”, desabafa.

O desejo de conhecer e ensinar a história de seu povo foi o que motivou Ronaldo Ferreira a iniciar o magistério. Em uma comunidade onde não existe mais nenhum falante da língua cocama, seu primeiro contato com o idioma de sua etnia foi por meio de um curso realizado por um linguista canadense. O acesso ao Ensino Superior é encarado pelo estudante como uma chance de garantir os direitos de seu povo e de se tornar protagonista de sua realidade.

“É um salto, não ficar somente como na época da colonização, esperando ser colonizado e iludido. No caso da demarcação de terras, por exemplo, entendendo o processo, sabemos que isso depende muito do poder político do nosso país e que não olham para a gente, porque isso não dá retorno financeiro para eles. Mas sem o apoio e a assinatura deles, desses políticos, é impossível para a gente viver. Com conhecimento, isso pode mudar, pois teremos mais amparo para unir forças e correr atrás dos nossos direitos.”

Para o antropólogo Ademir Ramos, a identidade cultural dos indígenas foi suplantada por muitos anos graças à política integralista aplicada durante a ditadura, em que a intenção era desprover o indígena de seu livre-arbítrio e “civilizá-lo” para a vida em sociedade. “Até a década de 60 havia uma linha humanista, que respeitava a cultura e as crenças dos indígenas. Mas a partir do golpe de 64, o governo militar estabeleceu um processo de reduzir o índio à condição de nacional. Para isso, fortaleceram relações com instituições missionárias perversas, que cuidavam da educação indígena”, afirma.

De acordo com Ramos, a política indigenista do Brasil ainda precisa se desenvolver muito, haja vista que a lei que rege as relações indígenas ainda data da época da ditadura. O Estatuto das Sociedades Indígenas está há 20 anos no Congresso, a convite dos interesses ruralistas. Apesar disso, a retomada das discussões a respeito do assunto é um bom sinal. “A escola tem de ser repensada, para que serve? Para integrar ou para gerar autonomia e valorização da cultura, empoderando suas lideranças para levantar suas lutas?”

*Publicada originalmente na Carta Capital (Carta Fundamental)