Ricardo Moreno: Momento de superar os vícios e governar com o povo

Por volta das 19 horas, horário de Salvador, começou a anunciar que, com 95% das urnas apuradas, Dilma estava à frente. E mesmo havendo a possibilidade remota de reversão, ainda que timidamente, a festa foi pouco a pouco tomando as ruas. Dirigi-me para a Praça da Dinha, no Rio Vermelho, e logo o que era uma visível tensão se transformou em uma grande explosão de alegria! Havíamos vencido novamente! Era a quarta vitória do povo brasileiro!

Por Ricardo Moreno*

Dilma em Salvador - Ichiro Guerra

Desta vez a festa parecia ser mais intensa, e razões não faltavam para isto. Foi a eleição mais difícil e mais disputada já vivida neste país. Era hora da catarse, de soltar o grito até então contido e que expressava a certeza de que havíamos evitado um grande retrocesso na construção da nossa democracia. Em 2014 tornou evidente a consolidação de um movimento, que eu venho observando desde as últimas eleições municipais – dois anos antes – que é a ascensão de ideias de direita junto à sociedade brasileira. De tal forma que os ataques que ocorreram durante esta disputa não se limitaram à candidata ou ao projeto nacional representado por ela e pelos aliados, mas atacaram também os nossos valores e nossas conquistas. Ressuscitaram com força o velho anticomunismo, justamente quando nos lembramos dos cinquenta anos do estabelecimento da ditadura fascista militar.

A construção da democracia começou justamente com a derrota dos milicos e o restabelecimento do estado de direito, depois um novo passo foi dado com a primeira vitória do projeto popular em 2002, fato que se repetiu por mais três vezes, contando com esta última conquista. Ao longo destes anos, o Brasil vem mudando e a grande novidade foi a retomada de um modelo de desenvolvimento, mas com inclusão em uma proporção nunca antes realizada. É que a experiência dos governos Lula e Dilma adotou como estratégia o crescimento com base no mercado interno, e promoveu setores até então excluídos do consumo. Foi, portanto, não só uma alternativa econômica, pois a nova demanda fez aquecer a produção e a circulação, mas também social.

Caem as máscaras

Talvez a ideia de um modelo mais inclusivo possa ter soado aos ouvidos das elites como ameaça da proximidade de fim dos seus privilégios. Certamente parte da sociedade se viu influenciada pela forte campanha que os meios de comunicação, sempre defensores de interesses bem menos nacionais ou populares, mas de caráter moralista, com viés muitas vezes violento. Reproduzindo com isso, um pouco da ambiência atrasada e do ódio que antecedem aos golpes conservadores, com tempero do malabarismo para tentar demonstrar que a economia vai mal, e que as pessoas estão hoje vivendo em condições piores do que no passado, ainda que nada disso tenha qualquer sintonia com a realidade. É que diante o mundo real, tentam por meio de propaganda sistemática, criar um universo paralelo, um mundo virtual em que eles é que afirmam o que é o plano objetivo, mas partindo apenas da repetição do discurso a fim de construir um efeito psicológico de aceitação disto como sendo a verdade.

A cada dia os meios de comunicação assumem mais claramente sua posição no jogo da luta de classes. Isso não é exatamente novo. Lembro que na Venezuela um canal de TV participou diretamente da montagem de uma tentativa de golpe de estado. A diferença, para nós, é que eles estão tirando definitivamente a máscara e assumindo, de forma nunca antes vista, a sua posição reacionária, deixando de lado o falso estereótipo de imprensa neutra com compromisso exclusivo com a verdade. A ponto de uma revista de circulação nacional antecipar a sua edição semanal para as vésperas da eleição, e partir para o ataque mentiroso e antiético contra a candidata da esquerda.

Derrota da imprensa fascista

Parece-me que esta imprensa fascista foi a grande derrotada destas eleições, dado o seu grande empenho em interferir no resultado final, mas sem conseguir o que pretendia. Por muito tempo o nosso governo tem titubeado sobre o enfrentamento da regulamentação da mídia. Este é um tema que a sociedade vem clamando, não se pode confundir liberdade de imprensa com direito de caluniar, manipular, mentir. Precisamos enfrentar esta questão, e junto a isso cuidarmos da educação política do povo.

Mas a vitória, por si só, não pode fazer desaparecer os nossos erros, as nossas fragilidades. Após doze anos de governo, e ampliando cada vez mais a nossa participação na frente institucional, podemos ter marchado para um caminho perigoso da burocratização. O que me pareceu claro com a nossa reação atônita diante das jornadas de junho de 2013. Um movimento de massas, amplo, sem pauta definida, que deu vazão a manifestações oportunistas de direita, o que demonstra haver hoje uma lacuna no espaço de vanguarda dessas massas. Algo estranho para nós que historicamente demos a cor e o tom das ruas, mas que reflete exatamente o nosso afastamento desse papel.

Outro aspecto, e que foi muito explorado pelos opositores, foi o fato de termos encarado a questão da governabilidade, diante da correlação de forças, seja no Congresso, seja na sociedade, elegendo como método as formas tradicionais da política. Formas estas que nós sempre denunciamos e combatemos no passado. Estamos sendo levados, cada vez mais a governar com os vícios, caminho talvez mais fácil do que o de tomarmos a decisão de enfrentá-los, denunciá-los, superá-los. Assumimos com isso a mesma vidraça que sempre coube aos nossos adversários, nos nivelando na mesma vala comum, e nos transformando em apenas mais do mesmo.

Precisamos nos reaproximar das ruas

Eu costumo pensar que o segundo turno tem sido normalmente benéfico para nós, de alguma forma. Se nos embates anteriores o segundo turno serviu para retomarmos uma linha de politização das campanhas, com uma conduta mais ofensiva, servindo para melhor diferenciação dos projetos em disputa, desta vez não foi diferente, no entanto, teve um elemento ainda mais significativo, que foi a volta da militância autêntica, uma espécie que parecia cada vez mais em extinção, e que de uma hora para outra parece ter acordado, tomou as ruas, combateu incessantemente nas redes sociais, fez a diferença, como costumamos imaginar que sempre o faz, ou deveria fazer.

Que isso sirva de alerta a todos nós. Precisamos nos reaproximar das ruas, recuperarmos o protagonismo dos movimentos sociais, e o nosso próprio protagonismo na vanguarda destes. Se durante anos dizíamos que estávamos diante um governo em disputa, e ali a disputa da qual falávamos dizia respeito aos rumos do modelo econômico, precisamos agora recuperar esta ideia, mas desta vez para tencionarmos sobre a forma de governar. Precisamos defender a proposição de não mais alimentarmos o monstro burocrático e viciado que se prolifera no parlamento e nas administrações, e ao invés disso, governarmos com as ruas, respeitando a autonomia das diversas frentes, mas abrindo dialogo franco com a sociedade civil, convidando-a a ser agente ativo e decisivo no processo de transformação. Temos de construir aí o nosso diferencial, e sermos mais uma vez capazes de seduzir, conquistar corações e mentes, ocuparmos o papel de vanguarda consciente das massas. Talvez seja esse o caminho para avançarmos no caminho das mudanças, e quem sabe mais do que isto, avançarmos para o projeto de um Brasil mais humano e menos desigual, este que tanto temem as elites mal acostumadas deste país.

* Ricardo Moreno é historiador e professor, Secretário de Articulação Interinstitucional da Uneb e Secretário de Juventude do PCdoB em Salvador (Bahia)