Denunciadas pelos médicos 

“De um milhão de abortos ilegais no País, 33 viraram casos de polícia em 2014. A maioria das denúncias foi feita pelos próprios médicos” (O Estado de S.Paulo, 21/12/2014). Os efeitos dessas denúncias vão muito além da prisão de possíveis inocentes.

Por Ligia Martins de Almeida*

Denunciadas pelos médicos

Garantir que os médicos ou hospitais não façam denúncias em casos de aborto seria o primeiro passo para diminuir o número de mortes em decorrência de abortos mal feitos, já que as mulheres evitam procurar hospitais com medo de uma possível denúncia e punição.

A atitude dos médicos é criticada pelo presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, João Ladislau Rosa: “O médico não tem o direito de agir como polícia. Mesmo que o aborto tenha sido clandestino, a mulher foi buscar cuidado de sua saúde e o profissional é proibido de agir contra a paciente”.

Enquanto o Código Civil continuar considerando o aborto como crime, é preciso que, pelo menos, a polícia faça – já que os médicos não fazem – uma rigorosa apuração dos fatos, antes de considerar as mulheres como criminosas.

O papel da imprensa teria que ir além da entrevista com as vítimas (culpadas, dirão alguns) e representantes de entidades oficiais. Seria preciso ouvir os médicos, autores das denúncias, para entender as suas verdadeiras motivações: eles têm medo de ser considerados cúmplices ou agem apenas motivados por crenças pessoais? Por acreditarem que essas mulheres merecem ser punidas?

Sobreposição de valores

Em São Paulo, onde há 12 mulheres cumprindo pena pela prática de aborto, sete foram denunciadas pelos médicos que as atenderam. Uma atitude que, para a Defensoria Pública do Estado, é um desrespeito ao sigilo médico: “Segundo o Código de Ética da Medicina, diante de um abortamento, seja ele natural ou provocado, o médico é proibido de comunicar o fato à polícia ou à Justiça”, informou a reportagem do Estadão.

O presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo acredita que existe um desconhecimento da ética profissional ou uma sobreposição de valores: “Se o médico não desconhece o código, está colocando suas convicções de ordem filosófica ou religiosa acima disso. Rompe até com os preceitos éticos. As mulheres podem e devem denunciar esses casos”.

Serviço relevante

A penalidade por quebra de ética, segundo o jornal, varia de advertência pública até a cassação do direto de exercer medicina. Se considerarmos que o médico que faz aborto pode ser condenado à prisão, o risco de uma advertência pública talvez seja visto como uma punição aceitável, nesses tempos em que os médicos vivem aterrorizados por medo de um processo por parte de seus pacientes.

Discutir o aborto – do ponto de vista médico, ético e legal – é a melhor forma de a imprensa prestar um bom serviço aos leitores, à sociedade e até aos médicos que acabam, seja qual for sua motivação, piorando a situação das mulheres que, involuntariamente ou não, se veem nessa situação.

*É jornalista