Brasil navega pela cooperação e soberania nas relações internacionais

O Brasil tem tradição diplomática na promoção do conceito de não-ingerência nos assuntos internos das nações e na solução pacífica das controvérsias. Estes foram termos empregados pela presidenta Dilma Rousseff em seu discurso de posse para o segundo mandato, para o qual foi eleita por 54 milhões de brasileiros. Alguns desses termos devem ser analisados, mas a ideia central, de respeito e cooperação com os outros países, ficou evidente.

Por Moara Crivelente*, para o Vermelho 

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Apesar das turbulências reais ou fabricadas que o Brasil enfrenta, e das quais tem conseguido se desvencilhar mantendo sólidos os principais pilares dos últimos 12 anos de governos progressistas, Dilma assegurou a continuidade de uma política que nos garante um papel importante no grupo de países que promovem o multilateralismo, a cooperação e as soberanias nacionais e populares, na defesa de um sistema internacional mais justo e representativo, onde as crises são respondidas com a diplomacia, e não a guerra ou as ameaças.

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Uma discussão mesquinha e deliberadamente tergiversada passou pelas revistas e jornais quando a presidenta disse, durante seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro de 2014, que o Brasil defende o diálogo para a solução das crises e dos conflitos, enquanto tratava da guerra na Síria. No país árabe, uma escalada intensa levou protestos populares comuns à intervenção indireta das potências imperialistas mundiais e regionais, através de uma miríade de grupos armados, mercenários e supostos fundamentalistas que instrumentalizaram o Islã para apresentarem-se como grupos religiosos. A mídia brasileira, em meio à empreitada agressiva contra a então candidata à reeleição, alegou que Dilma buscava o “diálogo com terroristas”, referindo-se a um dos grupos envolvidos no conflito alastrado entre a Síria e o Iraque, o Estado Islâmico, que os EUA e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) apresentaram como os alvos dos seus bombardeios.

Por outro lado, nos últimos dias se enfatizou a notícia sobre o pedido de respaldo, pelo vice-presidente dos EUA, Joe Biden, à presidenta Dilma, na condução da anunciada e histórica “reaproximação diplomática” com Cuba. O Brasil sustenta relações amigáveis e cada vez mais próximas com a nação caribenha, com crescente fluxo de comércio e cooperação em setores estratégicos para ambos os países. A ideia de cooperação e solidariedade internacional ainda não é “palatável” para muitos setores empresariais e civis no Brasil, mas as vantagens para o país trazidas pelos investimentos em Cuba, na África, na América Latina ou no Oriente Médio poderão começar a ficar mais claras com a desconstrução dos mitos pseudo-ideológicos construídos pela mídia conservadora brasileira como bandeira anti-Dilma, ou anti-esquerda. Isso ocorreu mesmo quando se tratou da defesa da soberania nacional, quando a presidenta cancelou a visita aos EUA após a revelação da espionagem estadunidense das suas comunicações e da Petrobras. 

O posicionamento em questões emergenciais e essenciais, como é o caso do massacre dos palestinos pelo Exército de Israel, também marcou 2014. Os porta-vozes sionistas no Brasil criticaram o governo por condenar o sofrimento civil na Faixa de Gaza e chamar o embaixador brasileiro em Israel para consultas. Assim, não foi surpresa quando, nas eleições, Dilma venceu na Palestina e Aécio Neves em Israel. A crescente aproximação do Brasil com os países árabes também foi marcada pelo novo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira. O esforço colocou o Brasil, por exemplo, no Comitê Consultivo da Agência da ONU para Assistência e Trabalhos para Refugiados da Palestina (UNRWA), o primeiro latino-americano a integrar o quadro. Em 2014, o Brasil enviou cerca de R$ 24 milhões em arroz para os palestinos em risco de fome. No ano anterior, enviamos cerca de R$ 20 milhões em ajuda, o que demonstra o crescimento das somas e do envolvimento do Brasil, que reconhece o Estado da Palestina desde 2010. Assim, o envolvimento político, ainda que busquemos expandi-lo, também é expressivo.

Diplomacia e cooperação

A tradição brasileira no sentido da diplomacia e da cooperação é histórica. A construção sólida das relações com a China e os outros países do Brics (Rússia, Índia e África do Sul) trouxe frutos transformadores em 2014, com um firme e claro posicionamento político através da Declaração de Fortaleza e o anúncio do Banco do Brics e do Arranjo Contingente de Reservas, alternativas dos países chamados de “emergentes” a um sistema financeiro dominado pelas potências ocidentais. Além disso, os países do agrupamento também cooperam intensamente em setores estratégicos como o das tecnologias e a infraestrutura, fornecendo alternativas inclusive a países que não compõem a sigla.

Líderes do Brics e da Unasul reuniram-se em Brasília em julho de 2014.

Ainda nesta semana, por exemplo, o novo chanceler brasileiro participará do Fórum entre a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e a China, estreitando laços estratégicos. Os últimos 12 anos também foram dedicados à aproximação contínua aos países da vizinhança latino-americana e aos africanos. As regiões, cuja influência histórica e atual foi completamente ignorada pelo conservadorismo e pela aspiração neoliberal dos nossos governos anteriores, submissos e conduzidos pelo imperialismo estadunidense e europeu, devem continuar a ser os focos do empenho brasileiro no exterior, sem significar, conforme garantido por Dilma, o confronto ou o distanciamento em relação aos EUA, à Europa e ao Japão. Afinal, não se pode ignorar que destes advêm importantes relações de troca a nível tecnológico, enquanto estadunidenses e europeus continuam sendo os maiores parceiros comerciais do Brasil. Quanto a isso, apesar da histeria da direita brasileira, não é preciso haver susto.

Mesmo assim, o ex-candidato e senador Aécio Neves avançou a vergonhosa proposta de redução do papel do Mercosul para retorná-lo à ambição de uma mera União Aduaneira (em detrimento da busca por fortalecer relações sociais, culturais e políticas na região). Aécio e seus patrocinadores ambicionavam o retorno ao patronato dos EUA e da Europa.

A crescente amizade do Brasil com os chamados países do Sul, com quem temos grandes afinidades (ou, para os conservadores, que têm servido de motor para o crescimento econômico mundial em tempos de crise), foi taxada pela mídia comercial e seus correligionários quase como um manifesto comunista representado pelas propagandas macarthistas de perseguição e repressão. Não é exagero, já que vimos muitos chavões até então supostamente enterrados no passado inundarem redes sociais e as páginas de veículos disseminados para exigir o impeachment da presidenta ou até a intervenção militar contra o “bolivarianismo”, conceito repetido como palavrão, sem qualquer entendimento do seu conteúdo libertador. É mais uma amostra da importância da democratização deste debate, principalmente para uma participação qualificada na condução da política externa brasileira.

Tamanho anacronismo não cabe em um país reconhecido mundialmente pelos avanços estruturais e históricos avaliados no Brasil, que tem desempenhado um papel importantíssimo no cenário global em assuntos fundamentais, de mediação e diálogos necessários, promovendo uma agenda de desenvolvimento mais justo, de representação mais abrangente e de cooperação, de reformas estruturais em organizações como a ONU e o Fundo Monetário Internacional, enfim, de temas verdadeiramente cruciais para o momento em que vivemos. Enquanto as forças conservadoras insistem na manutenção de um status quo há muito erodido, aqueles que buscam a transformação são agredidos e suas falas são distorcidas. As mudanças pelas quais ansiamos e lutamos dentro do Brasil refletem-se a nível mundial, assim como as conquistas que alcançamos e que mostramos, em outubro de 2014, pretender fortalecer.

*Moara Crivelente é cientista política, jornalista e membro do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz), assessorando o Conselho Mundial da Paz.