A luta milenar das mulheres pela igualdade de gênero

Há exatos cinco anos o editor da coluna Notas Vermelhas, do Portal Vermelho, Wevergton Brito Lima publicava um artigo relatando uma história pouco conhecida, mas que merece sempre vir à luz quando o assunto é a luta pela igualdade de gênero e direitos humanos. Na ocasião o jornalista conta um episódio que aconteceu na Roma antiga, quando um grupo de mulheres faz uma grande manifestação pela revogação da Lei Ópia.

Veja o artigo na íntegra:

Mulheres: Milhares de anos de luta pela igualdade

Ao comemorarmos os cem anos do 8 de Março, data emblemática e importantíssima, não podemos nos esquecer que a luta das mulheres por igualdade nasceu com a própria opressão. Um exemplo, pouco valorizado pelas feministas, vem da Roma antiga, por ocasião da revogação da Lei Ópia, há mais de 2200 anos atrás.

A Lei Ópia, adotada durante a II Guerra Púnica (218 – 201 a.C.) impunha uma série de restrições às mulheres romanas: elas não podiam ter posse de riquezas, não podiam vestir trajes de cores berrantes, não podiam circular em Roma em viaturas atreladas, entre outras arbitrariedades.

Durante 20 anos vigorava a lei, até que Lúcio Valério e Marco Fundâncio, tribunos da plebe (o senado romano era formado por patrícios, ou seja, pela aristocracia, os tribunos da plebe eram magistrados que não faziam parte da nobreza e que representavam os interesses do povo diante do senado, sendo eleitos por um “Conselho da Plebe”), propuseram sua revogação.
Aconteceu então uma verdadeira “sublevação de mulheres” (nas palavras de Catão). Elas fizeram barricadas nas ruas e se dirigiram ao Fórum, onde abordavam os senadores exigindo a aprovação da proposta dos tribunos da plebe.

A história, felizmente, nos deixou o registro dos discursos* do célebre Catão (Marcus Porcius Cato), feroz defensor da Lei Ópia e do tribuno da plebe Lúcio Valério, rebatendo os argumentos de Catão.

Catão, famoso por terminar seus discursos guerreiros com o brado de “Delenda Catargo” (Catargo deve ser destruída), era um exímio orador, mas lendo seu discurso hoje, vemos que o que antes era um libelo reacionário, com o tempo se tornou um eloqüente testemunho da coragem da mulher diante da injustiça.

Catão está verdadeiramente assombrado com a ousadia das mulheres, e acusa os homens de fraqueza: “por não ter sabido resistir cada qual à sua mulher, eis que agora a tememos a todas”.

Para Catão as mulheres são perigosas: “não existem seres dos quais possam vir piores males se os deixamos se reunir, deliberar, manter conciliábulos”.

O que parece mais incomodar Catão é a organização das mulheres em defesa dos seus direitos: “De minha parte, não foi sem corar que atravessei há pouco esses bandos de mulheres para poder chegar ao Fórum. Se o respeito pela dignidade e pela honra de cada uma delas, mais que por todas reunidas, não me retivesse – a fim de que não fossem vistas sendo censuradas pelo cônsul -, eu lhes diria: ‘Que vem a ser isso agora de correr para fora de casa, barrar as ruas, dirigir a palavra a homens desconhecidos? Não poderíeis, cada qual em seu lar, fazer essas solicitações? Sereis acaso mais sedutoras em público que em particular, mais para estranhos que para os próprios maridos?”.

Em determinado trecho de seu discurso, Catão, inadvertidamente, acaba relevando seu verdadeiro temor: “É a liberdade, ou para falar francamente, a licença geral o que desejam. Se acaso vencerem desta vez, o que deixarão doravante de intentar? Passai em revista todas as leis sobre as mulheres, graças às quais vossos ancestrais acorrentaram sua licença e as submeteram aos homens. Mesmo atadas por todas essas leis, mal conseguis contê-las. E se deixardes que destruam uma a uma, que sacudam todas para se igualar aos homens, acreditais podê-las suportar melhor? Apenas igualadas a vós começarão a vos superar”.

O discurso do tribuno da plebe, Lúcio Valério, merece todos os louros de uma prédica histórica, por sua intrepidez, habilidade e por seu caráter progressista.

Lúcio Valério defende o direito de manifestação das mulheres e usa um livro do próprio Catão para mostrar que na história de Roma as mulheres por diversas vezes se mobilizaram, sempre em defesa do bem comum : “Com efeito, o que as mulheres fizeram de novo ao se mostrarem numerosas em público por ocasião de um debate que lhes diz respeito? Jamais, antes deste dia, tinham aparecido em público? Vou folhear, contra ti, teu próprio livro das Origens. Escuta quantas vezes elas o fizeram, e, o que é mais, sempre pelo bem público”. Lúcio Valério passa então a enumerar, citando o próprio Catão, as mobilizações heróicas das mulheres, que por vezes salvaram Roma.

Mesmo dizendo que as mulheres deveriam ser mantidas “sob dependência e tutela” dos maridos (afinal, não vamos nos esquecer que estávamos no II século antes de Cristo e que em pleno século XXI d.C. ainda tem gente que pensa assim), Lúcio Valério diz que em relação às mulheres, os homens deveriam preferir “o nome de pais ou maridos ao de donos”.

A Lei Ópia foi revogada, consagrando a vitória das mulheres e dos tribunos da plebe.

Não existem dúvidas de que esta conquista só foi possível graças a uma grande, consciente e organizada manifestação. Depois, ao longo de centenas de anos, essa luta (a luta das mulheres contra a opressão de gênero) sofreu voltas e reviravoltas. Com o surgimento do movimento operário e do marxismo ela ganha novo e superior impulso. No entanto, infelizmente, mesmo com grandes avanços, ainda se tem muito preconceito a vencer e muitos direitos a conquistar. Em algumas regiões do planeta as mulheres vivem em condições mais severas do que na Roma antiga sob a Lei Ópia. Nada que desanime as mulheres e os homens conscientes. Pois sempre que uma lei justa é aprovada, como é o caso da lei Maria da Penha, sempre que uma mulher toma consciência de sua própria dignidade, sempre que se avança um milímetro sequer nesta estrada, “movemos a história adiante”, como diria a feminista Betty Friedan. Isso, ao que parece, já sabiam as heroínas da Lei Ópia, cujas vozes e os exemplos nos animam até hoje, 22 séculos depois…

**Existem várias fontes onde se podem encontrar os discursos de Catão e Flávio Valério. As citações acima foram retiradas do livro “100 Discursos Históricos”, organizado por Carlos Figueiredo, 5ª edição, editora Leitura.