José Carlos Ruy: Eduardo Galeano e as mãos da memória

O crítico Ronald Wright, do suplemento literário The Times, de Londres, disse certa vez ser “impossível” definir o estilo de Eduardo Galeno. Poderia ter ido mais adiante e indagado: quem foi Eduardo Galeano? Jornalista? Filósofo? Historiador?

Por José Carlos Ruy*, especial para o Portal Vermelho

Eduardo Galeano - Reprodução

Eduardo Galeano foi um autor que, mestre das palavras, criou uma forma de definir os latino-americanos. Ele não concordaria com o uso da palavra “criou”. Na verdade, dizia, foi nas ruas e nos cafés de Montevidéu que aprendeu o jeito de contar histórias que o consagrou.

Pode ser. Foi o estilo que ajudou a definir a América Latino e os latino-americanos.

Não é exagero dizer que somente um escritor uruguaio poderia fazê-lo. O Uruguai é uma espécie de esquina da América do Sul, traço de união entre os povos hermanos de tradição espanhola e aqueles, do outro lado do Chuí, herdeiros do legado português. Tudo isso misturado com as heranças africana e indígena, sobretudo o tupi guarani.

Galeano os unificou a todos em seus escritos – os “latino-americanos” da tradição espanhola e também aqueles, da herança portuguesa, os brasileiros. Somos todos latino-americanos, sentiu e ensinou.

Quem o conheceu não esquece a fineza no trato, a atenção e a gentileza que caracterizaram este homem de letras que se sentia em casa nas cidades de nossa terra. Um homem que sonhou com a liberdade, a igualdade, a solidariedade entre os povos do mundo e, em seus escritos, foi uma voz sensível e poderosa da gente que vive aqui.

Enfrentou a ditadura, as ameaças dos esquadrões da morte dos fascistas uruguaios, o exílio na Argentina e na Espanha (entre 1973 e 1985).

Ele fez da memória sua ferramenta constante. “A memória tem mãos”, disse em uma entrevista ao jornal Brasil de Fato no ano passado. Em outra ocasião, assegurou que a “memória guardará o que valer a pena”.

Foi com as mãos da memória que escreveu os quase quarenta livros que publicou desde 1963. Entre eles, o clássico de nossa esquerda, As Veias Abertas da América Latina (1971), que ajudou a despertar a consciência política da resistência e marcou a luta contra as ditaduras e o imperialismo dos EUA. Ou outro clássico, a trilogia Memórias de Fogo (1982). Livros indispensáveis que tiveram na memória a matéria prima fundamental para a tomada de consciência libertária, socialista, solidária.

Um câncer levou Eduardo Galeano na última segunda feira (13), em Montevidéu. Ele tinha 74 anos de idade: sai da vida e fica na memória, na memória material e tangível formada pelos livros que escreveu, que continuarão a despertar consciências democráticas e avançadas. No futuro, quando as injustiças e contradições contra as quais lutou estiverem superadas, permanecerão como testemunhos de dignidade e resistência.

Galeano se foi, mas sua memória permanece!

*Editor da Classe Operária, membro da Comissão Nacional de Comunicação e do Comitê Central do PCdoB; também integra a Comissão Editorial da revista Princípios

Leia um texto do livro As veias abertas da América Latina

Um império que importa capitais

O “Programa de ação econômica do governo”, elaborado por Roberto Campos, previa que, em resposta à sua política benfeitora, os capitais afluiriam do exterior para incrementar o desenvolvimento do Brasil e contribuir para sua estabilidade econômica e financeira[1].

Anunciavam-se para 1965 novos investimentos diretos, de origem estrangeira, de 100 milhões de dólares. Chegaram 70. Assegurava-se que, nos anos seguintes, o nível superaria as previsões de 1965, mas as convocatórias foram inúteis. Em 1967, ingressaram 76 milhões; a evasão resultante de lucros e dividendos, assistência técnica, patentes, royalties ou regalias e uso de marcas superou em mais de quatro vezes o investimento novo.

A tais sangrias teria de se somar também as remessas clandestinas. O Banco Central admite que, em 1967, emigraram do Brasil fora das vias legais 120 milhões de dólares. Como se vê, o valor do que saiu é infinitamente maior do que o valor que entrou. Definitivamente, os números dos novos investimentos diretos nos anos cruciais da desnacionalização industrial – 1965, 1966, 1967 – estiveram muito abaixo do nível de 1961[2].

Os investimentos na indústria congregam a maior parte dos capitais norte-americanos no Brasil, mas correspondem a menos de 4 por cento do total dos investimentos dos Estados Unidos nas manufaturas mundiais. Os da Argentina chegam apenas a 3 por cento; os do México, a 3,5. A digestão dos maiores parques industriais da América Latina não exigiu grandes sacrifícios de Wall Street.

“O que caracteriza o capitalismo moderno, no qual impera o monopólio, é a exportação de capital”, escreveu Lênin. Em nossos dias, como advertiram Baran e Sweezy, o imperialismo importa capitais dos países onde opera. No período 1950-67, os novos investimentos norte-americanos na América Latina totalizaram, sem incluir os lucros reinvestidos, três bilhões e 921 milhões de dólares.

No mesmo período, os lucros e os dividendos remetidos ao exterior pelas empresas somaram doze bilhões e 819 milhões de dólares. Os ganhos drenados superaram em mais de três vezes o montante de novos capitais incorporados à região[3].

Desde então, segundo a Cepal, novamente cresceu a sangria dos lucros, que nos últimos anos excedeu em cinco vezes os investimentos novos; a Argentina, o Brasil e o México sofreram os maiores aumentos da evasão. Mas este é um cálculo conservador. Boa parte dos fundos repatriados a título de amortização da dívida corresponde, na verdade, a lucros de investimentos, e os números tampouco incluem as remessas ao exterior relativas a pagamento de patentes, royalties e assistência técnica, nem computam outras transferências invisíveis que costumam se esconder atrás dos véus da epígrafe “erros e omissões”[4], nem levam em conta os lucros que têm as corporações ao inflar os preços dos abastecimentos que proporcionam às suas filiais e ao inflar também, com igual entusiasmo, seus custos operacionais.

A imaginação das empresas faz outro tanto com os próprios investimentos. De fato, como a vertigem do progresso tecnológico abrevia cada vez mais os prazos de renovação do capital fixo nas economias avançadas, a grande maioria das instalações e dos equipamentos fabris exportados para os países da América Latina cumpriu anteriormente um ciclo de vida útil em seus lugares de origem.

A amortização, portanto, já foi feita, de forma total ou parcial. Nos efeitos do investimento no exterior, este pormenor não é contado: o valor atribuído ao maquinário, arbitrariamente elevado, seguramente não seria nem sombra do que é, se formos considerar os frequentes casos de desgaste prévio. De resto, a matriz não tem por que lançar-se em gastos para produzir na América Latina os bens que antes lhe vendia à distância.

Os governos se encarregam de ajudar, adiantando recursos à filial que chega para instalar-se e cumprir sua missão redentora: a filial tem acesso ao crédito local a partir do momento em que põe um cartaz no terreno onde erguerá sua fábrica; conta com privilégios cambiais para suas importações – compras que a empresa costuma fazer de si mesma – e até pode conseguir, em alguns países, um tipo especial de câmbio para pagar suas dívidas no exterior, que frequentemente são dívidas do ramo financeiro da mesma corporação.

Um cálculo feito pela revista Fichas[5] indica que as divisas utilizadas na Argentina, entre 1961 e 1964, pela indústria automobilística, são três vezes e meia maiores do que o montante necessário para construir dezessete centrais termelétricas e seis centrais hidrelétricas com uma potência total de mais de 2.200 megawatts, e equivalem ao valor das importações de maquinário e equipamentos requeridos durante onze anos pelas indústrias dinâmicas para provocar um incremento anual de 2,8 por cento no produto por habitante.
 

[1]. Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica. Programa de ação econômica do governo. Rio de Janeiro, novembro de 1964. Dois anos depois, falando na Universidade Mackenzie, em São Paulo, Campos insistia: “Já que as economias em processo de organização não dispõem de recursos para dinamizar-se, pelo simples fato de que se os tivessem não estariam em atraso, é lícito aceitar o concurso de todos quantos queiram correr conosco os riscos da maravilhosa aventura que é o progresso, para dele receber uma parte dos frutos” (22 de dezembro de 1966).

[2]. “As remessas do Brasil registram uma alta desde a legislação de 1965”, celebrava o órgão do Departamento de Comércio dos Estados Unidos. “Aumenta o fluxo de juros, lucros, dividendos e regalias; os termos e as condições dos empréstimos estão sujeitos ao compromisso com o Fundo Monetário Internacional. International Commerce, 24 de abril de 1967.

[3]. Secretaria General de La OEA, op. cit. O presidente Kennedy já reconhecera que em 1960 “do mundo subdesenvolvido, que tem necessidade de capitais, retiramos um bilhão e 300 milhões de dólares, enquanto para lá só exportamos 200 milhões em capitais de investimento”. Discurso no congresso da AFL-CIO, em Miami, em 8 de dezembro de 1961.

[4]. Entre 1955 e 1966, os misteriosos erros e omissões somaram, por exemplo, mais de um bilhão de dólares na Venezuela, 743 milhões na Argentina, 714 no Brasil, 310 no Uruguai. Naciones Unidas/ Cepal, op. cit.

[5]. Fichas de investigación econômica y social. Buenos Aires, junho de 1965.

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