Kandinsky, o cavaleiro da cor

Wassily kandinsky tinha 30 anos de idade e uma carreira promissora como professor de direito quando, em 1896, durante uma exposição de impressionistas na capital russa, avistou os montes de feno pintados por Claude Monet. O que o artista francês representava, o chão e o sol de arder, o russo quase poderia sentir.

Por Rosane Pavam*, na Carta Capital

Obra de Kandinski - Kandinsky, Wassilvy/ Autvis, Brasil, 2014

E se Monet havia reunido coragem para pintar seu pequeno grande universo, todas as emoções provenientes da terra, o vento e a cor, por que um moscovita não poderia fazer o mesmo com seus pincéis?

Kandinsky se sentia renascer. Ele pertencia a uma aldeia também, aquela de sua origem familiar, e conhecera a expressão primitiva nos rituais siberianos. Ainda que a pintura representasse um luxo impensável para qualquer russo como ele, dedicaria a vida a concretizá-la, inspirado pelas revoluções que o precederam.

Em viagem à Alemanha, naquele ano, liberto do emprego que lhe roubava o ímpeto, sentiu na pele a efervescência das mudanças. E começou a procurar uma maneira própria de dizer as coisas.

“Cada época tem sua meta interna e sua beleza externa. Não se deve mensurar a beleza que nasce agora com o medidor do passado”, escreveu. Entre a ruptura figurativa e a reverência à cor, entre a espiritualidade e a razão, durante cinco décadas de errância a partir desse evento, ele percorreu cidades europeias, movimentos e escolas para produzir os 153 trabalhos que a exposição Kandinsky: Tudo começa num ponto recupera agora. Depois de uma bem-sucedida passagem por Brasília, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, a mostra finaliza a temporada no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, entre 8 de julho e 28 de setembro, sem deixar de expor os objetos primitivos e xamânicos que ele fez representar desde o início figurativo. Especialmente, ali estarão suas telas em diversos suportes, da madeira ao vidro, além de xilogravuras que, embora possam indicar uma forte abstração, nunca estiveram tão distantes assim das figurações ligadas à terra natal.

O que exatamente Kandinsky procurava é a pergunta inquietante. Era um pensador, em primeiro lugar, movido a expor suas descobertas em ensaios e livros. E, principalmente, um artista que, ao pintar, recusava a ajuda dos pensamentos. Sua busca era a mesma de muitos músicos, dramaturgos e escritores daquele período. Por meio da arte, ele desejava descobrir o espírito, o elemento escondido a determinar todos os acontecimentos em nossas vidas. O Geist universal que os filósofos então lamentavam somente ser possível descobrir no futuro, ao olhar a história para trás.

Era um futurista? Não, porque tal escola vanguardista, em lugar de procurar nosso íntimo, exaltava nosso exterior, o maquinário industrial, as ilusões do capital. Um cubista? Jamais, porque, ao redimensionar o espaço, os cubistas apenas renovavam a paisagem burguesa, não extrapolavam um estado paralisante de contemplação, não faziam com que o espectador entrasse no quadro em si. Kandinsky queria expressar o íntimo por acreditar que isso o uniria ao mundo. E esperava, enquanto isso, mudar o mundo.

“Prefiro definir a intenção de Kandinsky como uma busca positiva e não antirracionalista”, diz Eugênia Petrova, diretora científica do Museu Estatal Russo de São Petersburgo, que, após empreender a exposição Vanguardas Russas, em 2009, organizou esta mostra a partir da trabalhosa reunião de 12 acervos. “Ele é revolucionário porque se empenhou em sintetizar a forma expressiva sem se amarrar a padrões racionais da representação. O importante para ele era o mundo espiritual, a transmissão de sensações a partir da força de elementos básicos como cor e composição.”

Em 1901, como um primeiro passo rumo a afinar seu ideário, ele fundou na Alemanha a Nova Associação Artística e, quatro anos depois, com Franz Marc, o grupo Der Blaue Reiter, título de uma de suas telas (O Cavaleiro Azul). Ainda nos moldes da arte figurativa, Kandinsky e os vanguardistas russos na Europa propunham diluir o objeto pintado na tela, enquanto cor e forma se tornavam protagonistas do quadro. Depois de ensinar na Bauhaus, a escola internacionalista em que os saberes de música, teatro, pintura e arquitetura se cruzavam, escreveu Ponto, linha e superfície, em 1925, para defender uma teoria da pintura. Segundo ele, o ponto era ao mesmo tempo o zero e o momento de intervalo entre o falar e o calar. Se uma força externa o deslocasse na superfície, nascia a linha. A superfície poderia ser movida no espaço, sobretudo por meio da cor. Um quadro presente na exposição intuiu a descoberta. No Branco, de 1919, propõe esse giro no espaço, uma experiência de libertação.

Era também uma teoria que Kandinsky desejava aplicada à música, pois ele ainda se lembrava do efeito que lhe causara Lohengrin, tão impactante como as telas de Monet. O fortíssimo acorde final daquela ópera de Richard Wagner, executado por uma enorme orquestra, equivalia para ele a uma “mancha vermelha”, facilmente associada aos poentes de Moscou. Depois de Lohengrin, Kandinsky passou a advogar a busca de um “som colorido”. Em outro livro, Do Espiritual na Arte, de 1912, comparou a pintura ao piano: “A cor é a tecla. O olhar, o martelo. A alma, o piano com inúmeras cordas”. Tratava-se de uma busca adiante de todo o conhecido e praticado. Em São Jorge, de 1911, a energia do pincel via-se expressa por manchas de cor e um triângulo comprido e agudo. Havia desordem nos seus quadros, nunca confusão. São Jorge, um cavaleiro tantos vezes lembrado pela arte popular, deveria representar o espírito a mover o mundo. “A arte é o auge exclusivamente da área dos sentimentos, não do raciocínio”, passou a dizer.

Ele conta que sua compreensão do poder da arte não figurativa adveio de uma noite em que, ao entrar no ateliê em Munique, não conseguiu reconhecer uma de suas próprias pinturas. De cabeça para baixo, contudo, ela era uma obra “de extraordinária beleza, brilhando com um íntimo resplendor”. Contudo, não necessariamente buscava a abstração enquanto afinava o ouvido pictórico. As cúpulas das igrejas, o casario, os animais, as árvores e os contornos de Moscou poderiam quase sempre ser perceptíveis nos seus quadros. Mais importante do que isso, contudo, era compreender a dinâmica da cor. O amarelo, cor quente, irradia-se na direção do espectador, deslumbrando-o, enquanto o azul, frio, chama o homem ao infinito, despertando uma saudade da pureza, do suprassensível. Kandinsky mudou o mundo? Parece bastante constatar que o tornou profundamente bonito.