Publicado 31/07/2015 12:41

“Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
— Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância…”
Como poderíamos contestar a poesia? Seria como uma absurda luta contra uma estrela, pela vida inteira. Na verdade, na construção dos versos de Evocação do Recife, a história referida pelo poeta é a história dos livros didáticos e escolares, daquela história dos grandes feitos, dos grandes personagens e heróis, dos grandes nem sempre grandes, mas sempre disformes e ausentes de humanidade. Enquanto fala “o Recife sem história”, o poeta afirma a sua história particular, de um tempo ressuscitado pela evocação. Ou invocação do que parecia perdido, do que mais sentimos.
Como seria bom evocar e invocar, mastigar, beber, respirar e acariciar o Recife.
Os mortais comuns somos consolados pela salvação de que, se não possuímos a felicidade da poesia de Bandeira, também temos uma história do Recife, e não somente a história que temos vivido, mas a do sentido de dar voz a um Recife que amamos, e que tem nesse amor também uma história, um registro digno de ser gravado, pois tudo é histórico, até mesmo aquilo de que não nos damos conta. E por isso a contamos, à maneira de cantar.
O Recife tem várias cores e tons. O Recife tem várias estações em um só dia. Quando eu ia para o trabalho no centro da cidade, por força de mudança de turnos dos expedientes pude ver o Recife em diferentes horários. Então eu me dizia que o Recife também tem vários turnos. Óbvio, burro, ou mais óbvio e mais burro eu então estava. Hoje corrijo aqueles turnos para os diferentes tons e estações da cidade em um só dia. Assim é. Pela manhã cedinho, mas antes do sol luminoso, antes de escancarar sem pudor o seu dia, antes do aborrecimento das oito horas, quando sobem calor e agitação nas ruas, antes do burburinho de vozes e buzinas e sons de carrocinhas de CDs com os últimos sucessos que não se divulgam nas rádios, antes dessa necessária hora, por volta das seis da manhã o Recife é uma cidade que se olha em ruas quase desertas, mas não como uma cidade vazia.
Às seis, quando se ergue a pleno ver, sem risco de esbarrar em pessoas ou de bloquear a passagem de outras, o centro do Recife é de uma cidade de sobrados, de casarões do século passado, dos séculos dezoito e dezenove, que antes não se notavam. Nas ruas da Imperatriz, Nova, Direita, da Praia, do Rangel, lembro bem, vi uma vez o que era impossível ser visto na agitação das horas adiante. Na Rua do Rangel número 99, no primeiro andar se pendurava uma placa. Nela, a concordância verbal era um detalhe plástico:
“Aluga-se quartos para casal
Entrada e saída para casal
Aluga-se quartos para rapaz
Hospedaria Santo Antonio
Amor só para nós dois ao vivo
Deus proteja esta casa”
Mas a partir das oito, e num crescendo até o meio-dia, a cidade é muita gente na altura do rosto. Mal se vê o que ela esconde em edifícios e solidão, só os rostos. Mesmo quando entramos em uma loja e perguntamos, à procura daquela fresca lavanda de 1958, naquelas lojas que vendem de tudo na Imperatriz, e como se tentássemos recuperar um sonho, e como crianças descrevemos a busca com as palavras “é uma lavanda muito famosa, muito perfumada”, e a vendedora, coitada, nos olha de cima a baixo, e só vê um homem aflito e náufrago, mesmo aí a gente do Recife, por ser grande o tumulto e a luta para ganhar o pão, urgente desde ontem, apenas não mostra um rosto claro e preciso, como antes, no nascer do dia. Mas ainda assim as vendedoras nos acolhem, de outro modo, pela voz, pelo impulso generoso de ajuda, pela simpatia até o limite da inconveniência, santa, bendita e enganosa inconveniência:
– Olhe, o preço é tanto, mas para o senhor eu faço mais barato.
Por que para mim, ou para nós, nem perguntamos, porque fomos eleitos como os caras preferenciais. E continua a vendedora:
– Olhe, eu não posso fazer isso não, mas vou fazer.
E por não nos agradar o retórico desconto, eis que acontece o melhor. Naquela sinceridade que pode lhe custar a perda do emprego, ela nos fala num sussurro:
– O preço aqui tá muito caro. Nas lojas da Rua das Calçadas é mais em conta.
E assim agradecidos vamos.
Em alguns bares no Mercado Público da Boa Vista, existem donos que nos veem o cliente trazer a bebida de casa, e fazem de conta que nada veem, porque, sábios, por experiência sabem que gastaremos muito mais e com mais afeto. Nessa estância e lugar o Recife é a sua gente. O melhor do melhor do melhor. Eu seria capaz de tomar todas as páginas com a cara dessa gente. Com esse povo que é sempre o melhor da cidade.
No outono, quando a tarde morre, e com ela a esperança de que o dia fosse único para vencer toda carência e ambição, eis que a cidade renasce para a noite. Não sei bem se à noite é a primavera numa cidade de tanto calor. Mas a temperatura refrescada pela brisa termina por ser um renovado verão. É encantador. O melhor da noite da cidade é a sua juventude, toda ela, muito experiente pelo que ela mesma se quer e exibe, na força dos seus longos 20 ou 25 anos. Ela, a cidade, a juventude, está nas livrarias, teatros, cinemas e bares. Nestes, falar alto, descer às mais íntimas e vexatórias confissões se faz antes que o álcool das 22 horas suba.
– Fale baixo, fale baixo – ouvimos na mesa vizinha.
– Menino, eu num tou dizendo o nome dela não, tá ligado?
Sim, estamos todos ligados com o ar mais sonso da noite. Essa gente do Recife, essa encantadora gente do Recife, essa gente provinciana e cosmopolita do Recife, às vezes mata a gente de emoção e ternura, de um carinho que rasga o solo como uma flor no asfalto duro. Esse povo tem um rasgo natural de decência que é contra até a própria necessidade, quando em estado natural de pobreza. E de tal modo, que nós, metidos a generosos, mas que pensamos duas vezes antes do abandono ao coração, nos surpreendemos e ficamos tontos. Como a generosidade de um vendedor de graviola na cidade, que eu vi oferecer o suco da fruta a uma turista e se negou a receber o pagamento. “Não, é um presente pra senhora, que não conhece o sabor da fruta”, ele respondeu. Como a de amigos que emprestam parte da sua biblioteca, construída em muitos anos , a escritores de dicionários. Assim, desse modo agiu o professor de história e pesquisador Givaldo Gualberto para que eu escrevesse o Dicionário Amoroso do Recife.
Este é um Recife, em resumo, que está mais em seu povo que em todos os monumentos, pontes, rios e edifícios. Este é o Recife que visto de cima, no avião que chega, acende um calor, uma alegria e uma felicidade sem palavras, somente fogo íntimo. “Estamos de volta, Recife”, suspiramos em silêncio, e pouco importa se estivemos fora um mês, um ano ou dois dias. Quem é do Recife, quem já viveu no Recife, quem passou um tempo no Recife, sempre dirá: eu tenho um caso pessoal com esta cidade.