Altair Freitas e os refugiados: "nossa civilização é um fracasso"

A Europa transferiu mais de 11 milhões de seres humanos na condição de escravizados da África para as Américas entre os séculos 16 e 19. No mesmo período, as populações nativas do continente americano desabaram de 70 milhões para menos de 10 milhões. Africanos e os povos pré colombianos contribuíram decisivamente – sem querer – para a acumulação de capitais na Europa.
Por Altair Freitas*

Crianças sírias - Muhammed Muheisen/Associated Press

Nações europeias ergueram suas economias, indústrias e comércio, em boa parte, sobre os escombros, sangue, saque de riquezas dos povos africanos e "americanos".

Foram mais de trezentos anos de massacres e violência de todo tipo. A nossa civilização, é preciso que fique muito claro, ergueu-se sobre essas bases. Sobre tais pilares construímos um mundo coberto e recoberto de contradições profundas que afetam nossas vidas de diversas maneiras. Não é um problema de querer ou não querer. É assim que a história funciona: uma profunda relação entre mudanças e permanências que se estendem por séculos.

Por isso eu insisto que não é possível compreender parte significativa das chagas do mundo atual sem uma detida análise dessa relação entre a construção da Europa Capitalista (e mais à frente dos EUA), de uma civilização capitalista, de um mundo no século 21 que é predominantemente capitalista, sem relacionar o que somos hoje com o passado, o mais longínquo e o mais recente.

Não compreender essa relação umbilical induz qualquer pessoa a erro de interpretação sobre a dinâmica do mundo atual. Leva a considerar que existem povos inferiores e superiores. É o caminho mais rápido para sustentar preconceitos e abençoar a exploração desenfreada, sob o manto enganoso do progresso, do avanço civilizacional.

Por isso afirmo que nossa civilização é um fracasso. Há uma intensa riqueza, uma enorme capacidade de produzir riquezas inauditas, como nunca antes na história humana. Mas tais riquezas estão super concentradas em algumas nações e mesmo nessas nações a desigualdade é a tônica. E muita gente julga o mundo pela sua aparência e não, principalmente, pela sua essência. Em um mundo no qual a riqueza de 1% da população mundial é maior do que os demais 99%, não tenhamos dúvidas: a tendência não é melhorar, mas piorar um pouco mais.

A gloriosa Europa e sua extensão histórica mais efetiva, os EUA, estão em forte declínio histórico, movimento que atinge o Velho Mundo há um século e pegou os EUA mais recentemente. Impérios em queda tendem a ser mais violentos, mais agressivos. É uma forte tendência histórica. As recentes guerras localizadas no Oriente Médio e África têm dois focos fundamentais: controle sobre bacias petrolíferas e reabertura de mercados consumidores que estavam escorrendo pelas mãos das potências do Norte.

Como no passado colonial, as potências constroem alianças com elites nacionais que são beneficiárias diretas desse processo, ou tentam ser,quando se trata de desestabilizar governos arredios. E se há uma tentativa das vítimas desses conflitos buscarem refúgio na Europa, isso não é sinal de vitalidade europeia, apenas dá uma pista sobre a dramaticidade com que o capitalismo tratou várias regiões do mundo nos últimos séculos, nas últimas décadas. E não há solução estruturante para os problemas fundamentais do mundo enquanto vigorar o tipo de estrutura econômica e política atuais.

*Professor, membro do PCdoB e Secretário Executivo da Escola Nacional de Formação do Partido