Que horas? ou “a sua piscina está cheia de ratos”

Não é mero acaso o sucesso de Que horas ela volta?, de Anna Muylaert. Há relatos de que em quase toda sessão uma salva de palmas reverencia o filme. Anna toca fundo nos corações e mentes. Alguns veículos de comunicação tentam desfocar o tema para romanceá-lo, alegando que o principal enredo é a relação mãe/filha/babá/criança. Mas a sua estrutura de conflito está intrinsecamente ligada à luta de classes e o Brasil que emergiu nos últimos anos.

Por Vandré Fernandes*, no portal da UJS

Filme Que horas ela volta - Divulgação

Se o carioca Casa Grande, de Fellipe Barbosa, aborda o olhar mesquinho da elite diante da crise em que a classe média alta vive no país, Que horas? nos revela o olhar da senzala moderna.

Val (Regina Casé) recebe a notícia de que sua filha Jéssica (Camila Márdilla) vem do Nordeste para prestar o vestibular de arquitetura na USP. Mas Val, uma empregada doméstica, mora há 10 anos na casa de uma família rica paulistana do bairro do Morumbi, onde cuida da casa e do filho do casal, Fabinho.

A confusão está montada. Quando a filha chega, o patrão (Lourenço Mutarelli) que é um ex-artista plástico e vive em depressão, passa a assediar a garota. Ele cede aos caprichos de Jéssica a deixando ficar no quarto de hóspede, causando a fúria de Bárbara (Karine Teles), a dona da casa.

A menina aceita tudo e Val fica desesperada com a atitude da filha.

“Foram eles que ofereceram”, diz a garota. “Quando eles oferecem é por educação. Mas eles esperam um não!”, retruca Val.

Esse drama vai enredar o filme quase o tempo todo, num misto de suspense e comédia, algo que Anna conduz muito bem. Esses elementos já são marcas da sua trajetória fílmica, basta ver seus filmes anteriores (Durval Discos, Proibido Fumar e Chamada a cobrar).

O espectador é tomado por uma tensão durante a projeção de Que horas?. É aquela coisa: “xi, agora vai dar merda!” Mas a cena passa e novamente você é levado ao desconforto. Algo que apenas alguns gênios são capazes de fazer no cinema.

“Há uma voz que canta, uma voz que dança, uma voz que gira…”

“Val, você nunca entrou nessa piscina?”, Jéssica pergunta.

“Você acha que eu vou entrar na piscina dos outros?”, responde.

O lazer é um lugar proibido para os serviçais. Porém, Fabinho (Michel Joelsas) e o amigo jogam Jéssica na piscina, causando fúria em Bárbara. A madame então pede para esvaziar a piscina, alegando que viu um rato e que precisava desinfetar. Este talvez seja o recorte mais nítido da diretora sobre o ódio de classes. É como se dissesse que quarto de hóspede se tolera, bem como sentar-se à mesa, mas se divertir no mesmo lugar da elite dominante, não.

E esse é bem o retrato das classes econômicas A e B, que até se solidarizam com os menos favorecidos, mas não toleram viajar de avião com pessoas de classes populares, encontrar a empregada de férias nas mesmas praias do nordeste. Enquanto a maioria quer inclusão, a minoria busca exclusividade, daí a intolerância com políticas públicas inclusivas aplicadas nos últimos anos, como as cotas e o Bolsa Família.

E vai ser dentro da piscina que Val, ao saber que a filha tinha passado no vestibular, explode de felicidade, se libertando das amarras do patrão e decidindo mudar de vida ao lado da filha. A cena é uma poesia. O sorriso de Casé jogando água para frente, lavando os braços e o rosto, pode se transformar numa das cenas mais antológicas do cinema brasileiro. Ela perfila ao lado de Norma Bengel em os Cafajestes e Othon Bastos, na morte de Corisco, em Deus e o Diabo na terra do Sol.

Regina Casé arrebenta como Val. Aliás, como todas as personagens femininas nos filmes de Muylaert, elas começam frágeis, confusas e vão virando a mesa. Mulheres extremante impactantes. É assim com Gloria Pires em É proibido fumar e em Chamada a cobrar com Bete Dorgam.

Vale destacar, também, a excelente atuação de Camilla Márdilla, que em sua primeira incursão no cinema, faz uma dobrada genial com Casé.
Dois pontos me deram uma impressão negativa. O primeiro é o personagem Lourenço. Ele contribui pouco para o enredo. Acho pouco convincente um homem depressivo, sem vida, se assanhar com uma garota. Existem outros tipos de homens doentes que poderiam incrementar esse conflito, um pedófilo, maníaco, voyer, que se sentisse atraído e ao mesmo tempo repugnado por ela. E Anna chega a jogá-lo no lixo quando o personagem fica de joelhos para pedir Jéssica em casamento. Bem, mas alguns vão dizer que Myulaert sempre tem personagens inusitados, e isso é verdade, como a mãe de Durval, em Durval Discos, mas a personagem de Etty Fraser está no local certo e não me parece o mesmo com o ex-artista plástico.

O outro ponto é o clichê no resultado do vestibular. A menina pobre, do nordeste, passa na USP, o menino rico não passa, mas ganha um prêmio de consolação da família, e vai passar uns meses na Austrália. Claro que isso não tira o brilhantismo do filme.

A obra de Muylaert foi indicada pelo Brasil para concorrer a uma vaga de melhor filme estrangeiro no Oscar. Geralmente as nossas indicações têm sido depois que o filme saiu de cartaz. Como o filme está em todo o Brasil, isso impulsionou a bilheteria nacional, claro que acompanhado do ótimo resultado.

Que horas ela volta? talvez tenha fechado a trinca de grandes filmes brasileiros do último período, ao lado do pernambucano O Som ao redor e do carioca já citado Casa Grande. Um retrato do Brasil atual. E mesmo que muitos pobres nordestinos entrem nas universidades, ainda vai existir muitos filhinhos de papai preferindo Austrália ou Miami, num ritmo acelerado das panelas Gourmet. Ou seja, ainda precisamos mudar muita coisa.