Ser índio na Argentina: uma história de apagamento e genocídio

Em "Indígenas e criollos", o pesquisador brasileiro Grabriel Passetti fala de como os descendentes de espanhóis promoveram uma matança indígena no sul do país para conseguir estabelecer seu domínio do território e criar o mito da Argentina europeizada.

Por Juliana Cunha

Cacique argentino - Reprodução/ Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas

O livro fala de índios guerreiros que se organizam para revidar a perda de território e poder na Argentina do século XIX. Ele conta desde a adesão do coronel e cacique branco Manuel Baigorria, juntamente com os Ranquel, seus aliados indígenas, às tropas de Urquiza, em 1852, até a rendição do último cacique livre, Saygueque, em 1885. Desse modo, Passetti mostra como a política de Estado de guerra contra os chamados índios bárbaros produziu um desfecho trágico, dizimando populações indígenas inteiras.

Passetti é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e professor de História das Relações Internacionais do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense. Na entrevista abaixo, concedida ao Vermelho, ele fala sobre genocídio indígena, construção do imaginário nacional argentino e diferenças entre os índios brasileiros e argentinos.

No livro você fala de como os índios argentinos se uniram para combater os criollos, como eram chamados os descendentes de espanhóis nascidos na América. Como era o cenário político da Argentina nessa época?

Entre 1852 e 1861, a Argentina esteve dividida politicamente entre Buenos Aires e a Confederação Argentina (que reunia todas as demais províncias) por conta de uma disputa a respeito da unificação política e fiscal do país sob o controle portenho. A partir de 1862, o país foi unificado, sob o comando dos liberais de Buenos Aires. Os indígenas que habitavam as regiões pampeana e patagônica mantinham relações econômicas, políticas e sociais com os criollos, mas defendiam sua autonomia e soberania. No período do cisma político, praticamente todos os caciques mais destacados se aliaram à Confederação por acharem o projeto político desse grupo mais afinado com o deles. Isso é, mais integrador, menos hostil e impositor de padrões ditos civilizacionais. Isso não significa que os criollos da Confederação fossem totalmente favoráveis aos indígenas, mas ambos, criollos e indígenas, eram inimigos do grupo de Buenos Aires.

Entre os indígenas, havia intensa miscigenação entre diferentes grupos, predominando as características culturais, sociais e políticas dos Mapuche (uma etnia que se origina no território onde hoje fica o Chile). Havia dois importantes cacicados que organizavam os indígenas da região política e militarmente: o cacicado de Salinas Grandes, sob o comando de Juan Calfucurá, e o cacicado do grupo Ranquel de Leuvucó, cujo expoente mais destacado era Paghitruz Guor.

Quais são as principais diferenças entre as formas de organização dos índios brasileiros e argentinos?

Há muitas diferenças nas formas de organização dos próprios índios brasileiros, o território é imenso.

Mas quanto aos índios dessa região sul da Argentina — que eram muito distintos dos Guarani da província de Misiones, ou de grupos do norte do país —, eles mantinham uma estrutura política, social e econômica centralizada na figura dos caciques, muitos com linhas sucessórias familiares. Eles praticavam agricultura, coletavam e faziam pecuária, mas uma parte essencial de sua atividade era o comércio de gado, criado ou roubado dos criollos, que era vendido em diferentes províncias da Argentina e no Chile, especialmente no século XIX. Esses indígenas também estabeleceram intensa comunicação escrita com os criollos. Os caciques em geral eram alfabetizados, ou tinham alguém alfabetizado por perto que fazia essa mediação com autoridades civis, militares e religiosas.

No livro você explica As Campanhas do Deserto como sendo um genocídio indígena, mas essas campanhas ainda são muito exaltadas na Argentina como uma vitória. Por que isso acontece? Seria como a nossa relação com os Bandeirantes?

As Campanhas queriam eliminar os indígenas fisicamente e foram muito bem sucedidas nisso. Muitos foram mortos durante as operações militares e outros tantos não sobreviveram ao primeiro ano sob comando criollo, tendo sucumbido ao frio, fome e ferimentos.

As Campanhas são muito exaltadas porque são tidas como o momento em que a Argentina vista como civilizada (Buenos Aires) conseguiu conquistar o território que não era explorado e também vencer resistências histórias que impunham freios ao projeto liberal portenho. As Campanhas ainda são exaltadas por parte dos argentinos, mas há também muita crítica a elas. Estátuas do maior general que as comandou, Julio Argentino Roca, são constantemente pichadas, a nota de 100 pesos que reproduzia quadro laudatório do fato e a face de Roca foi substituída.

Podemos fazer essa aproximação com os bandeirantes por essa compreensão da expansão territorial e da eliminação de resistências ao uso intensivo da terra, mas na Argentina foram campanhas oficiais do Exército, enquanto as ações dos Bandeirantes eram quase sempre empreendimentos privados apoiados por agentes da Coroa Portuguesa.

Como é a influência e a herança indígena na Argentina hoje? Os índios e sua cultura são respeitados de algum modo? Há uma relação dúbia, como no Brasil, onde o índio é visto ao mesmo tempo como um símbolo nacional e um problema a ser resolvido?

Na história e no discurso oficiais, praticamente não há indígenas. Os livros didáticos dedicam pouquíssimas páginas ao período colonial, praticamente não falam sobre os povos pré-colombianos e mesmo sobre o século XIX, e pouco abordam essa questão.

A Argentina construiu sua identidade como um país de brancos descendentes de europeus, um enclave da civilização europeia na América do Sul, o indígena não cabe nesse discurso. Há ainda muitos índios na Argentina, em Misiones e no norte, mas eles não entram nessa imagem nacional e são em geral muito mal vistos. Portanto, nem essa relação idealizada com o índio eles têm.