Redução estatal: uma solução equivocada para os problemas do Estado

Mais um partido surge em nossa multi-partidária democracia – o Partido Novo. Sua bandeira principal: minimizar o papel do Estado, que atrapalha o desenvolvimento das pessoas e das empresas. De viés notadamente liberal (apesar de não declará-lo), este é mais um novo partido na busca de trazer alento à tão saturada política brasileira, tendo registrado seu Estatuto no Tribunal Superior Eleitoral em setembro deste ano.

Por Thomás Oliver Lamster8, no Justificando

neoliberalismo

Dia 26 de outubro, o Caderno 2 do Estadão publicou uma entrevista com o seu fundador e presidente, João Dionísio Amoedo, a qual utilizaremos como base para estas breves reflexões sobre o papel do Estado brasileiro, que se tornam ainda mais fundamentais em momentos de crise.[1]

Ressaltamos que o presente texto não tem por escopo criticar o referido partido, mas sim analisar criticamente algumas das ideias expostas por seu fundador, que encontram certo respaldo em segmentos da sociedade e que valem a pena refletirmos juntos sobre.

Perguntado sobre quais as grandes causas do partido, João Dionísio afirma na entrevista ao Estadão que a principal é “lutar para que se reduzam o papel e a presença do Estado na vida das pessoas e das empresas. O governo não tem que ser um protetor da sociedade – o que é uma desculpa para ele controlar. Tem de cumprir tarefas essenciais e deixar os cidadãos viverem em paz.”.

Indagado sobre quais seriam tais tarefas essenciais, responde: “saúde, educação, segurança, defesa, política externa. Uns cinco a sete ministérios, mais uma boa rede de proteção para pessoas na extrema pobreza. O que sabemos, todos, é que o Estado, como qualquer um de nós, não consegue fazer bem um montão de coisas ao mesmo tempo. Tem de fazer poucas, e bem. Além disso, num país como o nosso, um Estado menor significará menos estrago e menos corrupção.”

Apesar de aparentes boas intenções, ainda que demonstradas em ideias um pouco rasas (além dos exemplos acima, cite-se uma das propostas do fundador do Partido Novo para tirar o Brasil do buraco: “ter ideias corretas – como essa de que o Estado tem de estar menos presente”.), é preciso que tenhamos cuidado com propostas simplistas para a solução de todos os nossos problemas e reflitamos sobre qual é o propósito, a razão de ser do Estado brasileiro – e como chegar à concretização de seus objetivos.

E o caminho para analisarmos tal questão parte, como não poderia ser diferente, da nossa Constituição (como já disse o eminente jurista Ayres Britto, seja qual for a pergunta jurídica, o problema, impasse, ou crise, é só perguntar à Constituição).

De forma bem sucinta, podemos dizer que a Constituição Federal de 1988 adotou um modelo de Estado que garante às pessoas proteção em face do arbítrio estatal (as liberdades públicas). Há aqui, fundamentalmente, um dever de não interferência do Estado nas liberdades de seus cidadãos.

No entanto, também garantiu a Carta Magna uma série de direitos sociais, que reclamam, de forma contundente, a atuação estatal para a sua satisfação. Tal atuação se faz necessária como forma de garantir igualdade em seu sentido material e um mínimo existencial que garanta a todos a observância de um dos fundamentos de nossa República, a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III). Estes são os direitos sociais.

O artigo 6º do texto constitucional traz quais são esses direitos: “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”. Além disso, a Constituição ainda prevê os direitos dos trabalhadores (artigo 7º), a promoção e incentivo ao turismo (artigo 180), o direito à cultura (artigo 215), todos de marcada índole social, a requerer indispensável atuação estatal e sua interferência, como forma de dar concretude aos ditames da justiça social.

Tais ditames que, diga-se de passagem, são a base da ordem econômica, que tem por fim assegurar a todos existência digna, nos termos em que prevê a Constituição (artigo 170).

Os direitos sociais foram obtidos por meio de incontáveis lutas ao longo da história (tais como as liberdades públicas). Todos, fundamentais ao ser humano. E mais uma vez: todos a requerer intensa atuação estatal para sua concretização.

Vemos, então, que o viés garantidor e protetor do Estado brasileiro perpassa por todo o texto constitucional, sendo sua principal característica. Um de seus objetivos fundamentais é erradicar a pobreza e a marginalização e diminuir as desigualdades sociais e regionais (artigo 3º, III), o qual não se pode furtar qualquer Administrador Público ou qualquer projeto político de poder.

Em outras palavras, o Estado tem como função constitucionalmente imposta a proteção e concretização dos direitos fundamentais do ser humano, sendo, sim, agente protetor da sociedade e fundamentalmente, dos que dele mais precisam. Não é possível furtar-se a tal dever, reduzindo a presença estatal nesta seara, como parecem indicar as ideias expostas por João Dionísio.

Não negamos que nosso país tem um aparelho estatal ineficiente, que realiza gastos astronômicos e atinge poucos resultados. Isso é uma triste realidade, com a qual não podemos compactuar e contra a qual devemos lutar. Urge a realização de reformas estruturais que consigam corrigir falhas sistêmicas que acabam por insistentemente afundar o nosso projeto de desenvolvimento e modernização.

O número imenso de cargos comissionados, de ministérios, de apaniguados reflete o nosso passado patrimonialista ainda presente. A mistura entre o público e o privado continua sendo um dos traços marcantes de nossa Administração Pública, ao lado de sua crônica ineficiência. Que, diga-se de passagem, anda de mãos dadas com o patrimonialismo. E com a corrupção, cuja presença diária em nossos jornais, em todos os níveis e esferas de Poder, é realidade tão vívida dos brasileiros que não requer maiores elucubrações.

É necessária a diminuição de gastos desnecessários com a máquina pública. Afinal de contas, é o dinheiro do povo que sustenta tal máquina (e no Brasil, por uma das enormes maldades de nosso sistema jurídico, quem paga a maior parte, em termos proporcionais, é justamente quem menos tem a contribuir). É necessário o incremento de sua eficiência, uma solução para a corrupção. Tudo isso é urgentíssimo!

No entanto, e aqui que mora o perigo, tal constatação não pode ser levada para o extremo de querer negar a atuação do Estado enquanto garantidor e principal ator do desenvolvimento humano e social. Não podemos cair em tentação de, frente à ineficiência, corrupção, altos gastos do Estado, querer desmobilizá-lo, minimizar sua atuação em áreas nas quais ela se faz necessária, e destituí-lo dos instrumentos que tem em mãos para efetuar o que dele se espera.

E não se espera por simples esperar, por simples desejo ou vontade, mas sim por ser este o seu papel constitucionalmente delineado.

Diminuir o Estado em uma falsa crença de que esta seria solução, que desaparelhá-lo diminuiria a corrupção, aparentemente “imune” à iniciativa privada, não nos parece sustentável. Reduzir os seus deveres ao mínimo, deixando “as pessoas em paz” nos parece de todo inconstitucional.

Tal raciocínio talvez funcione para quem não dependa do Estado para satisfazer condições mínimas de existência; no entanto, certamente não funciona nada para aqueles que dependem da atuação positiva estatal para viver com dignidade.

De todo o exposto, concluímos que o que nós precisamos é de um Estado eficiente em seus propósitos, e não mínimo em suas atribuições. Esvaziá-lo de sua missão é rasgar o texto constitucional.

Transformá-lo em uma máquina eficiente, corrigir suas falhas estruturais, lutar contra a corrupção, garantir correta aplicação do dinheiro público, é tornar realidade e dar concretude aos seus princípios. E tal realidade passa necessariamente por um fortalecimento das instituições e mecanismos estatais, como forma de garantir que o Estado cumpra com suas atribuições.