Terrorismo kamikaze: a França nomeia suas guerras

Depois de viver uma noite de horror na sexta-feira, 13 de novembro, Paris descobriu que os oito terroristas que semearam a morte antes de se suicidarem pertenciam à mesma geração da maioria das 129 pessoas mortas em locais de lazer como cafés e restaurantes, casa de show e estádio de futebol.

Por Leneide Duarte-Plon

Franceses prestam homenagem ás vítimas do atentado

No Stade de France, os kamikazes aparentemente se auto-imolaram por acidente, provocando apenas uma morte de um passante. A carnificina teria sido inimaginável se tivessem explodido suas cinturas de explosivo na entrada ou na saída dos torcedores.

Charlie Hebdo foi aperitivo

Algumas autoridades vinham alertando nos últimos meses para o altíssimo risco de ataque terrorista. Vários atentados haviam sido desmantelados antes de serem realizados. Um especialista da segurança interna chegou a declarar a um jornal francês : "Estamos certos de que novos ataques virão, não podemos dizer onde nem quando". Outro declarou : "Charlie Hebdo foi apenas o aperitivo".

A carnificina de sexta-feira deu razão a eles.

A França está em guerra no Oriente Médio desde o ano passado, quando começou a bombardear o Iraque. Este ano começaram os bombardeios à Síria visando o Estado Islâmico, que na França é nomeado por suas iniciais em árabe, Daech. E na Africa subsahariana a França também dirigiu ataques eficazes contra terroristas no Mali. Essas guerras, não nomeadas como tal, fizeram do país um alvo privilegiado dos islamistas radicais que pregam a guerra santa, o djihad.

A declaração formal de que a França está em guerra só foi feita na madrugada de sábado, 14 de novembro, quando o presidente Hollande tomou a palavra depois dos atentados de Paris.

O primeiro-ministro Manuel Valls declarou aos franceses que a França está em guerra contra um inimigo cuja barbárie não conhece limites. Esses inimigos, que exportaram pela primeira vez a guerra para o território francês, também costumam ser classificados de "monstros".

Num debate nesta segunda-feira, o filósofo Raphael Enthoven lembrou que os combatentes de Daesh partilham com todos nós a mesma humanidade. São tão humanos quanto nós e é o que torna a análise mais complexa.

Eles são tão humanos quanto eram os nazistas, capazes de crimes de guerra e de crueldade inimaginável até aquele momento da história da humanidade: o extermínio de homens e mulheres em escala industrial nos campos de concentração.

"As medidas de exceção devem ser provisórias", lembrou Enthoven.

O ex-ministro da Justiça Robert Badinter assinalou por ocasião do debate que ao responder aos ataques terroristas com o “estado de emergência" e outras leis que se seguirão, a França não pode renegar seus valores de liberdade e de país dos direitos humanos.

"Ela não pode se transformar num Estado securitário", alertou Badinter. Ele devia ter em mente as leis do Patriot Act, votadas imediatamente após o 11 de setembro, que limitaram as liberdades individuais nos Estados Unidos e abriram a porta para leis liberticidas e para a justificação da tortura no combate ao terrorismo, como foi amplamente noticiado.

"Precisamos tomar medidas de segurança sem perder de vista os direitos humanos", alertou Badinter, autor do projeto de lei que aboliu a pena de morte, em 1981, logo depois da eleição de François Mitterrand.

Seria possível bombardear impunemente?

Em comunicado enviado aos jornalistas, a Associação Euro-Palestine diz que a França atacou países e populações que nunca tinham atacado o país.

"Como imaginar que seria possível bombardear impunemente o Afeganistão, o Iraque, a Líbia e a Síria ?", pergunta o comunicado. E continua : "Com que direito a França interveio militarmente ? Bombardeios feitos pela França fizeram vítimas inocentes, inclusive mulheres e crianças. Ou as vítimas inocentes só emocionam François Hollande quando elas são francesas ?"

O comunicado segue dizendo que é impossível "evitar que pessoas que se identificam com aquelas vítimas ou sejam familiares delas se transformem em kamikazes".

A frase de Jean Jaurès toma todo seu sentido no contexto atual, lembrou o comunicado : "O capitalismo carrega em si a guerra como a nuvem, a tempestade".

E termina afirmando que a França deve lembrar das vítimas dos atentados de Paris dando sentido à divisa que funda a República francesa : "Liberdade, igualdade, fraternidade".

Comentando os atentados de Paris, um jornalista lembrou que um pouco antes de deixar sua função este ano, o ex-juiz antiterrorista Marc Trévidic declarou : "Nós estamos no olho do ciclone. O pior está diante de nós".

A apreensão de milhões de franceses não deve permitir que deixem de viver normalmente, aconselham os políticos. Ceder ao medo e se voltar contra a comunidade muçulmana, por exemplo, é uma forma de dar a vitória aos terroristas, que querem instalar um clima de guerra civil.

Nesta segunda-feira, centenas de pessoas feridas ainda estão sendo tratadas em diversos hospitais da capital, onde os médicos se viram diante de uma traumatologia de guerra à qual não estão acostumados.

"Parecia o Afeganistão", disse o diretor de um dos hospitais parisienses. Todos os 38 hospitais públicos de Paris receberam imediatamente o reforço de médicos e pessoal especializado vindos espontaneamente prestar socorro às vítimas. Os centros cirúrgicos passaram a trabalhar sem interrupção para socorrer todos os feridos.

O chefe do serviço de emergência do Hospital Georges Pompidou, Philippe Juvin, disse que o afluxo dos médicos a todos os serviços dos hospitais foi espontâneo e superou toda a expectativa, demonstrando que o modelo francês de saúde pública é eficaz e pode responder a tragédias como essa de forma exemplar.

*Jornalista, trabalha em Paris e é co-autora, com Clarisse Meireles, da biografia de frei Tito de Alencar, Um homem torturado-Nos passos de frei Tito de Alencar.