Nasser: Ameaça de terrorismo é usada para justificar intervenção

Professor de Relações Internacionais da PUC-SP, Reginaldo Nasser critica a resposta militar aos atentados em Paris. Segundo ele, grupos como o Estado Islâmico deveriam ser combatidos pela via econômica – cortando verbas e armas. Ao Vermelho, ele denuncia certa “cumplicidade” entre os que praticam terrorismo e aqueles que afirmam combatê-lo. Para Nasser, por trás do discurso da reação ao terror, há a tentativa de justificar intervenções em outros países e fomentar uma pujante economia de guerra.

Terrorism is not islam

Por Joana Rozowykwiat

Quando ocorreram os atos terroristas em Paris, Nasser estava com passagem comprada para a cidade. Chegou ao local no dia seguinte aos atentados e acompanhou de perto os dias que se seguiram – viu desde a população assustada até a declaração de guerra dada pelo governo Francês.

A França como alvo

Segundo ele, estudioso do assunto, a França tornou-se um alvo para os terroristas há pouco tempo, desde que adotou uma postura mais intervencionista “Basta lembrar que o [ex-presidente Valéry] Giscard D'Estaing ficou contra a Guerra do Iraque, se opôs à intervenção no Oriente Médio. E, do [Nicolás] Sarkozy para cá, houve uma grande mudança. A França começou a entrar no Mali, na Líbia, etc”, apontou.

“Agora, eles [a França] dizem: ah, vamos reagir aos atentados, ao Charlie Hebdo e a esse agora. Mas antes desses atentados eles já estavam agindo. Então a França se tornou um foco, porque é um estado interventor”, avaliou.

O professor explica que, assim como todo ataque terrorista, as mortes visam mandar uma mensagem. Nesse caso, direcionada ao governo francês: “Saia da Síria e do Iraque, pare de jogar bomba lá”. Com o ataque, o Estado islâmico buscaria mostrar que o governo é fraco, incapaz de proteger seus cidadãos.

“Mas o que eles [os terroristas] esperam também? Que o governo restrinja as liberdades, que vá atrás dos islâmicos, que atinja também os inocentes. Porque o que eles querem? Que a causa deles cresça, para demonstrar que a França é o inimigo”, completou.

Uma ameaça ao mundo?

De acordo com ele, é próprio do terror que o impacto das mortes faça com que os grupos pareçam ter uma força maior que aquela que realmente têm. Sem tirar o peso e a importância dos atentados, Nasser procurou desconstruir o discurso de que o Estado Islâmico é uma grande ameaça que paira sobre todo o mundo.

Para isso, citou uma pesquisa recentemente divulgada pelo Institute for Economics and Peace no site da BBC. De acordo com o estudo, o grupo Boko Haram provocou mais mortes em 2015 que o Estado Islâmico: foram cerca de 6,5 mil vítimas este ano. “Se a gente parar para pensar, no Brasil, morrem mais de 55 mil por ano, vítimas de homicídio. Eles [os terrorista] matam 6 mil e são uma ameaça ao mundo? Isso é o que eles querem passar. E é também como a França, os Estados Unidos e a Rússia querem que apareça”, disse.

O terror adquire a expressão de “uma cumplicidade muito interessante entre os que praticam e aqueles que argumentam combatê-lo, justificando uma reação”, afirmou. Para ele, são grupos que se retroalimentam. “Aumentou o número de pessoas alistadas na França. O governo Francês, antes do ataque ao Charlie Hebdo, já era o mais repressivo em relação ao terrorismo. Depois, passaram novas medidas, e agora virão outras. Quer dizer, assim eles vão justificando o orçamento militar”.

A inútil guerra ao terror

Crítico da resposta militar aos ataques, Nasser cita alguns números para defender a ineficiência da guerra ao terror. “Dados dos EUA mostram que em 2002, 2003, morreram 2,5 mil, 3mil pessoas vítimas de terrorismo. Em 2014, morreram 32 mil. Então quanto mais se combate, mais cresce. Se você olhar pelo lado racional, não faz sentido nenhum”.

Além disso, um estudo feito pelo Nobel de Economia, Joseph Stiglitz, contabiliza que, só nas Guerras do Iraque e do Afeganistão, os Estados Unidos gastaram mais de US$ 3 trilhões. “Milhares de pessoas foram mortas e o terror continua aumentando”, analisou Nasser.

Conveniente para muitos

O professor aponta que a existência do terror serve para justificar não apenas o discursointervencionista de países do Ocidente, como também seria conveniente para regimes ditatoriais do Oriente Médio. “No fundo o que está se dizendo é: ‘olha, se não são as ditaduras, é o terrorismo, não tem possibilidade de democracia. Olha aí o que foi a primavera árabe’. Esse discurso cresceu. Então se construiu uma ideia de contrarrevolução”, opinou.

Em relação ao Ocidente, Nasser avaliou que ainda prevalece uma postura imperial, de que é justificável interferir nesses países. E o terrorismo, disse, referenda este discurso. No fundo, o objetivo seria preservar um domínio político, econômico e militar, “como eles [do Ocidente] fazem há mais de cem anos”, afirmou.

Nasser lembrou, por exemplo, que em vídeo disponível no site Vice News, um combatente do EI celebra a demolição de estruturas que demarcavam a fronteira entre o Iraque e a Síria e afirma que eles estavam ali rompendo o tratado Sykes-Picot. A referência é ao tratado estabelecido em 16 de maio de 1916, delimitando fronteiras e definindo as áreas de influência entre França e Inglaterra após a derrocada do Império Otomano. “Quer dizer, isso tem um sentido histórico”, defendeu Nasser.

O discurso bélico

Nasser contou que sua percepção em relação aos franceses, pós-atentados, é de que estavam todos muito assustados e sem querer muita conversa. “Não sei dizer se apoiam [a investida militar], mas também não reprovam”, disse. De acordo com ele, há certo receio de que uma oposição à guerra seja interpretada como uma condescendência com o terror.

Para Nasser, contudo, declarar guerra ao Estado Islâmico significa valorizar uma organização terrorista e reconhecê-la como ator importante a ser combatido. “Você confere um status a eles, legitima o Estado Islâmico. E é isso que eles querem”, condenou o professor, lembrando que a grande vítima, nessas situações, é a população civil.

“Eles [os terroristas] estão espalhados. Quando se diz: bombardeou o EI, imagina! Eles estão dentro de cidades. Como é possível bombardear o cara e não acertar mais ninguém? Isso é uma irresponsabilidade. Estão matando civil para burro!”, criticou.

“Coincidentemente, tinha lá em Paris uma exposição do Picasso, com releituras de quadros dele à luz da Guerra do Vietnã. E aí lembrei que Paris está precisando de um movimento como o que teve nos EUA: saiam do Vietnã. A França tem que parar com isso. É contra o terrorismo? Isso é óbvio, ninguém é a favor do terrorismo. Agora pare de ficar bombardeando os lugares, de ficar se metendo! Mas não é isso o que está se passando. Os grandes partidos estão em silêncio, com medo de falar e de pensarem que estão sendo condescendentes com terrorismo”, expôs.

De acordo com o professor, os atentados terminam por fortalecer posturas de extrema-direita. “Vi na França a Marine Le Pen, com ironia, dizer que estava muito contente porque todos os partidos agora estavam assumindo uma agenda que era dela”.

Siga o dinheiro

Reginaldo Nasser defendeu que a melhor forma de combater o terrorismo é atacá-lo do ponto de vista econômico. Segundo ele, o Estado Islâmico possui entre 25 mil e 30 mil militantes armados – todos pagos. O dinheiro para financiar o grupo viria, basicamente, de três fontes: tributos cobrados nos territórios que dominam (em troca de alguns serviços), sequestros e, principalmente, venda de petróleo.

A questão, nesse caso, é: quem compra esse petróleo, que financia o terror? “Jornalistas e investigadores quase todos dizem que é a Turquia o grande comprador. Embora às vezes até [Bashar al] Assad compre, não diretamente, mas porque cai no mercado negro e vai para todo mundo. E se o barril hoje custa 95, 100, eles vendem por 35, 40. Então está cheio de gente querendo comprar”, apontou Nasser.

De acordo com ele, esse know-how a respeito do petróleo e do mercado negro o EI herdou das forças de Saddam Hussein, que teriam se integrado à organização terrorista. “Quando Saddan foi derrotado, estimava-se que o número de pessoas que faziam parte do Exército iraquiano era de 350 mil, 400 mil pessoas. Quer dizer, essas pessoas saíram de seu emprego de uma hora para outra e ficaram dispersas. Mais recentemente, começaram a se articular”, explicou.

Ele detalhou que, desde a primeira Guerra do Golfo, um grupo desenvolveu um elaborado mercado negro na região, principalmente de armas e petróleo, para burlar a sanção econômica imposta ao Iraque. “E, ao que tudo indica, esse pessoal está aí hoje, estruturando o Estado Islâmico”.

O professor explicou que, apesar de tudo sinalizar que a Turquia é a maior compradora do petróleo do terror, ninguém faz nada. “Ninguém toma uma providência, porque o país é membro da Otan, aliado dos Estados Unidos. Mas o fato é que eles [os terroristas] estão vendendo esse petróleo. Ate porque, no dia em que deixarem de pagar a esses militantes, ninguém vai sair por aí só com a fé não. Uma meia dúzia sai, mas 30 mil, não. Se seca esse pessoal de recurso, o que eles vão poder fazer? Nada.”, disparou.

Lucrando com a guerra

Para Nasser, se houvesse interesse real em combater o terror, o caminho seria ir atrás não só de quem compra o petróleo, mas também de quem vende as armas. “Mas quem tem interesse em fazer isso? Quem vai mexer com a produção de armas? É das indústrias que mais cresceram depois do 11 de setembro [de 2001]. Veja, os maiores fabricantes de arma do mundo são Estados Unidos, França, Rússia, Inglaterra e China. E essas são as armas que chegam lá. Quem vai mexer nisso?”, questionou.

Nasser citou que uma matéria de 2008, do Washington Post, relatava que cerca de 500 mil pessoas nos Estados Unidos possuíam empregos diretamente relacionados a combater o terrorismo. “Então é uma indústria. Você aumenta o orçamento, contrata pessoas, dá treinamento, a economia cresce, uma economia de guerra. Não tem outra explicação”, defendeu.

Para ele, diferente da imagem que se tentou passar, os responsáveis pelos últimos atentados em Paris eram amadores. “Tentaram construir a de que eram planejadores. Mas o que precisava ali? Gente disposta a matar e morrer, aliciar essas pessoas, botar arma na mão delas e falar: vai a tal lugar, tal hora e atira a esmo. Quando os policiais chegaram, não durou 30 segundos, mataram todo mundo. Quer dizer, eram amadores”.

Nasser alertou então que, por não se tratar de gente especializada, preparada, é difícil identificar, prever e traçar perfis, como forma de evitar novos ataques. “Nesse estilo que eles fazem, vai ter sempre alguém para fazer. Então por aí não vai dar para combater. Como você vai saber qual perfil que é? Quem vai fazer? Impossível. Então tem que ser mesmo pela via econômica”.

A história mal contada

Ao contabilizar as forças que hoje alegam combater o Estado Islâmico, o professor ironizou o suposto poderio dos terroristas. E defendeu que há algo mal explicado nessa história. “O Irã está lá colocando soldado para lutar contra o EI. A Rússia diz que está lá bombardeando. A França, os Estados Unidos… Toda hora a Rússia e os Estados Unidos acertam alguém. Quer dizer, os grandes exércitos todos. Só falta a China. E os caras [do EI] continuam lá, numa boa? Então eles se proliferam, igual a erva daninha, vão se multiplicando”, alfinetou.

Segundo ele, trata-se de um “atentado ao bom senso” achar que faz sentido essa equação. “Quer dizer, esses caras são demais, né? Haja poder! Como é que não se consegue cercar economicamente esses caras? Não é possível. Tem algo mal contado. Como pode? Há um mês a Rússia bombardeando e eles não saem do lugar. Não mudou em nada o poder territorial deles. Eles se multiplicam!”.

Nasser defendeu que, por trás dos chamamentos a pôr fim à ameaça do terror, há muitos e poderosos interesses. “A melhor coisa do mundo hoje é ter terrorista. Cresce a indústria militar, cresce a intervenção. Porque, de que outra forma você iria justificar gastar dinheiro para intervir em outro pais? Quer dizer, de alguma forma isso favorece grupos muito poderosos”, polemizou.

Segundo ele, principalmente após o 11 de setembro [de 2001], a tendência no mundo é a de sempre “exagerar as ameaças”. Como exemplo, ele mencionou a capa de um jornal francês à época de ataques terroristas no Mali, em 2012.

“Na capa, dizia: Mali ameaça a segurança do mundo. E tinha uma foto. Eu digo: bom, aqui eles estão revelando a falsidade, porque tinha uns insurgentes do Mali, que nem de sandália havaiana estavam. Estavam descalços, com uns fuzis enferrujados. Aquelas pessoas ameaçam o mundo? Pelo amor de Deus, eu não caio nessa. Mas todo mundo vai reproduzindo: ameaça, ameaça, ameaça…”, condenou o professor.

Quer dizer, sem lidar com as raízes do extremismo, alguns países alardeiam a necessidade de reação e alimentam um lucrativo círculo da violência. Vítimas do terror e do contraterror, a população civil é duplamente penalizada. Empurrada para a diáspora, ainda tem que conviver com o preconceito e a xenofobia.

“A questão dos refugiados, na verdade, remete a uma concepção de estado e sociedade. Aqueles que dizem que não querem sustentar gente que não é nacional vão querer forçar essa associação [entre muçulmanos e terroristas]. Mas é óbvio que eles [os refugiados] são as vítimas, eles estão fugindo”, encerrou Nasser, prevendo uma onda de intolerância em relação aos estrangeiros de origem muçulmana.