Não à ‘Abertura Já’ da economia brasileira

O Estado de S. Paulo publicou, em 29/11/15, artigo de Gustavo Franco intitulado “Abertura Já!”. Gustavo Franco é professor de Economia da PUC do RJ. No governo de FHC, foi secretário adjunto de Política Econômica do Ministério da Fazenda, diretor de Assuntos Internacionais e presidente do Banco Central. É um dos membros que discutiu e elaborou o Plano Real. Portanto, Franco faz parte dos economistas alinhados com os principais partidos de oposição aos governos petistas, especialmente o PSDB.

Charge neoliberalismo

Por Jefferson José da Conceição e Roberto Vital Anav*

No artigo, Franco defende “a revisão da estratégia de inserção externa, de nossas crenças sobre o conteúdo local, adensamento das cadeias produtivas e acordos internacionais (…)”. E parte para o ataque contra o PT e suas políticas. Diz Franco: “Na verdade, a proteção tarifária, as reservas de mercado, as desonerações (…) parecem se amontoar em tempos recentes no contexto do ‘capitalismo de quadrilhas’ que aqui se quis implantar, e que a Operação Lava Jato se empenha em combater”.

Quanto aos adjetivos raivosos de Franco, vamos deixá-los de lado. Faremos apenas dois breves registros. O primeiro é que Franco não tem a mesma virulência crítica com relação ao período neoliberal no qual compartilhou a gestão econômica do país. Assim, ele não consegue avistar qualquer tipo de atos de quadrilha em relação à forma como se deu o processo de privatização no Brasil da segunda metade dos anos 1990. Isto, em que pese o fato de que a privatização permitiu verdadeira liquidação, fatiamento e apropriação privada do patrimônio público, da ordem de mais de R$ 100 bilhões, como noticiaram vários órgãos e especialistas à época e pelo menos dois livros importantes: O Brasil Privatizado, de Aloysio Biondi, e A Privataria Tucana, de Amaury Ribeiro Jr.

O segundo registro é que, de acordo com o relatório final da CPI do Banestado, apresentado no final de 2004, o próprio Gustavo Franco foi responsável pela evasão de mais de R$ 30 bilhões entre os anos de 1996 e 2002, pois foi o criador dos mecanismos que legalizaram as contas CC5. O relator da CPI mista chegou a sugerir o indiciamento de 91 pessoas, entre elas o ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco. Pergunta: não seria, isto sim, um típico “capitalismo de quadrilhas”?

Mais importante aqui, porém, é destacar que o artigo de Franco nos revela qual tende a ser a linha de política econômica desenvolvida pela oposição, caso se efetive a tentativa de deposição do governo da presidenta Dilma. Trata-se de um retorno aos princípios que nortearam as políticas dos anos 1990, de Estado Mínimo, abertura indiscriminada às importações, desnacionalização, privatizações, livre entrada e saída de capitais (especialmente os especulativos, que fizeram uma festança nos tempos de Franco no Banco Central).

Em outros artigos já publicados aqui no ABCDMaior, mostramos nossa posição contrária ao retorno destas políticas neoliberais. Defendemos a intensificação do diálogo social por meio de fóruns como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República, as Câmaras Setoriais, os Arranjos Produtivos Locais-APLs. Somos favoráveis à elaboração e a execução de políticas industriais gerais e setoriais indutoras do processo de crescimento. Vemos sentido sim em medidas como conteúdo local, adensamento das cadeias produtivas, acordos internacionais, incentivos fiscais. A questão é como fazê-los de forma a melhor beneficiar o nosso desenvolvimento, e não apenas grupos individuais. Apostamos em políticas ativas de inclusão social, incorporando a população de baixa renda ao mercado interno, como a Política de Valorização do Salário Mínimo e o Bolsa Família, entre outras. Portanto, uma linha diametralmente oposta à defendida por economistas como Gustavo Franco.

Vale apontar também para o estilo arrogante do texto de Franco. Lembremo-nos que ele escreveu um livreto nos anos 1990 que se tornou o "texto de cabeceira" do então presidente FHC. Nele, Franco pretendeu desconstruir a racionalidade e o legado dos mais de 50 anos de Políticas de Substituição de Importações (PSI), experimentadas pelo país entre 1930 e 1980, e que se constituíram na força motriz de nossa industrialização. Para Franco, as políticas protecionistas nada mais eram do que um lixo de que o Brasil precisava se libertar para avançar. O mesmo tom de escracho reaparece no artigo de novembro passado.

Para um economista de viés liberal, há várias maneiras de combater uma linha de pensamento como a que embasou a PSI. A pior das maneiras, porém, é a que fez Franco em seu referido artigo. Ele buscou, ardilosamente, distorcer os argumentos e ações e montar debates irreais no passado para, então, saltar até o presente e mostrar como "os dados provam" a verdade de um dos lados daquele debate distorcido. Para dar mais credibilidade, Franco coloca-se a si mesmo no passado no que chama de "lado errado", isto é, o dos defensores da PSI. Assim o artigo contém uma espécie de "mea culpa". A intenção do artigo é mostrar que o próprio Franco já teria flertado com o “pecado” no passado, isto é, com o protecionismo, mas que há anos mudou de lado. Para Franco, é hora agora de o país mudar de lado também e avançar para estar em consonância com o mundo moderno, especialmente dos países avançados.

Franco faz referência à Coreia, que teria aplicado a bíblia neoliberal, cujo ensinamento original reside na fiel crença à Teoria das Vantagens Comparativas de David Ricardo (economista do início do séc. 19). É notável, neste sentido, a extraordinária omissão por parte de Gustavo Franco do papel da reforma agrária e do investimento pesado na educação desde os anos 1950 na Coreia, conforme, entre outros, apontam Chris Freeman e Luc Soete, no livro A Economia da Inovação Industrial. Para o evangelho de Franco, tudo se resume a “Abertura ou Fechadura”. Sobre a experiência da Coreia, vale a pena recuperar os trabalhos de Ha-Joon Chang, que apontam para uma interpretação muito distinta da visão superficial apontada por Gustavo Franco.

Suponhamos que de fato algum dia em sua vida Franco tenha defendido o modelo econômico que depois se esmerou tanto em demolir textualmente. Nesta hipótese implausível, teríamos o que o professor Paulo Nogueira Batista Junior, em brilhante artigo na Folha de S. Paulo, em que faz resgate histórico, chamou de “piruetas ideológicas de parte da intelectualidade”. Paulo Nogueira diz que “o pior tipo de liberal é o ex-socialista”. Estas palavras poderiam servir a FHC e muitos de seus apoiadores, como seu líder no Congresso, Roberto Freire, do PPS (ex-líder comunista). Assim, seriam a atual arrogância e o apego quase religioso ao dogmatismo neoliberal espécie de exorcização de juvenis arroubos nacional-desenvolvimentistas de Gustavo Franco?

O neoliberalismo possui grande poder de persuasão, mas deve parte disso à distorção sistemática de argumentos e fatos do passado. Infelizmente, os economistas heterodoxos têm sido menos agressivos no desmascaramento desses mecanismos, muitas vezes sinuosos e escorregadios (3). Uma das tentativas nesse sentido pode ser lida no artigo de Roberto Anau, “Estado e mercado: uma resenha histórica” (disponível em http://www.espacoacademico.com.br/085/85anau.htm).

O neoliberalismo é uma ideologia, muito mais que uma teoria. Teorias, por suposição, devem ser expostas ao teste empírico (da prática) e sofrer alterações ou refutações em face desse teste. Todas as grandes crises e mudanças econômicas ensejaram mudanças de paradigmas teóricos. Da Grande Depressão emergiu a Revolução Keynesiana; da estagflação do final dos anos 1970 surgiram os novos clássicos e sua Teoria das Expectativas Racionais, a matriz neoliberal. Agora, estamos em uma época crítica para economistas e historiadores econômicos. Vivenciamos a maior crise mundial desde a Depressão de 1929. Sua relação com o paradigma neoliberal, de desregulamentação geral, foi testemunhada pelo próprio Alan Greenspan, ex-presidente do Banco Central dos EUA durante a era neoliberal, que afirmou no Senado daquele país, assim que a crise financeira eclodiu: “Estamos incrédulos, em estado de choque” (BBC Brasil, 23/10/2008).

Entretanto, para nosso horror, os defensores do neoliberalismo, tão entrelaçado com as causas da crise, nada alteraram em suas análises e suas recomendações. Ao contrário, parecem estar ainda mais convencidos de que o mundo necessita “mais do mesmo”. Fazem-nos relembrar Talleyrand, famoso diplomata da França pós-napoleônica do séc. 19, quando se referiu aos Bourbons (dinastia destronada pela revolução e restaurada após a derrota de Napoleão): “Nada apreenderam, nada esqueceram”. De fato, as receitas emanadas pelos centros de poder econômico e político (especialmente a chamada “troika” – FMI, Banco Mundial e Banco Central Europeu) para todos os países continuam exatamente as mesmas desde sempre defendidas estridentemente pelo neoliberalismo.

Em entrevista à Revista Carta Maior, Maria da Conceição Tavares, uma das maiores economistas do Brasil, clama: “Vivemos um colapso neoliberal sob o tacão dos ultra-neoliberais. Não estamos falando de gente normal, é preciso entender isso. Não são neoliberais comuns. (…) É a treva! Vivemos um colapso do neoliberalismo sob o tacão dos ultra-neoliberais: isso é a treva! E ela se espalha desagregando, corroendo”. Essas palavras de Maria da Conceição nos alertam para os riscos do retorno das ideias de Gustavo Franco, o impenitente re-escrevedor da história sob o ponto de vista do dogma neoliberal.

Não custa lembrar que foi sob o comando da equipe da qual fazia parte Gustavo Franco que o Brasil teve uma segunda “década perdida” em termos de crescimento econômico e geração de empregos. Também foi ele que manteve por longo período a valorização cambial (1994-1998) que asfixiou e matou centenas de empresas, eliminou cerca de 50% dos empregos industriais, e nos manteve reféns do capital especulativo, agora necessário para fechar o balanço de pagamentos, inchado pelo excesso de importações. Acabamos voltando à UTI do FMI no final de 1998, momento em que Gustavo Franco se retirou do governo e voltou à universidade para pregar “mais do mesmo” e, não por acaso, montar, em 2000, empresa (a Rio Bravo Investimentos) para prestar serviços na área de investimentos financeiros, aquisições, fusões, securitizações. O credo ao neoliberalismo ele mantém irrestritamente até o presente, como demonstra o artigo citado.

Esperemos que, após o interregno neoliberal do ex-ministro Joaquim Levy, o governo brasileiro adote um caminho menos destrutivo para a recuperação de nossa economia.

*Jefferson José da Conceição é professor doutor na USCS e diretor superintendente do SBCPrev; Roberto Vital Anav é professor na USCS, doutorando na UFABC e assessor da Secretaria de Orçamento e Planejamento Participativo da Prefeitura de São Bernardo

Fonte: ABCDMaior