Saul Leblon: Devolver à democracia o poder de dizer não ao mercado

O ajuste neoliberal consiste em demolir o que foi conquistado para instituir o retrocesso como limite do possível e a exclusão como sinônimo de estabilidade.

Por Saul Leblon*

Levy e Barbosa

Bastou a primeira semana útil de 2016 para a desordem mundial envelhecer miseravelmente o rosto do novo calendário.

Apesar de operar formalmente a pleno emprego – sem considerar o imenso contingente do “precariado”, a recuperação norte-americana expôs sua paradoxal fragilidade: as principais Bolsas do país fecharam a última sexta-feira em baixa, na pior primeira semana do ano de toda a história de Wall Street.

Vinte e quatro horas antes, a congênere chinesa havia registrado o pregão mais curto de sua história. Em apenas 30 minutos, quatro dias após cravar uma queda de 7% (segunda-feira, 04/01), a sessão teve que ser interrompida ao replicar o mesmo recorde de baixa.

São acomodações restritas “apenas” às duas maiores economias da terra?

Não. As vendas do varejo na Europa declinaram em dezembro. A FAO informa que em 2015, pelo quarto ano seguido, os preços mundiais dos alimentos fecharam em queda, de quase 20%. Os preços do petróleo na primeira semana do ano recuaram abaixo dos US$ 34 o barril. O Banco Mundial reviu suas previsões para 2016 cortando para 2,9% a projeção para o crescimento mundial.

Foi assim a primeira semana do ano novo.

Por que isso não merece a atenção do colunismo embarcado nos departamentos de análise econômica dos bancos?

A indiferença jornalística diante das determinações globais que dificultam a transição de ciclo do desenvolvimento brasileiro tem razões estratégicas.

O véu espesso lançado pelo noticiário cuida de sonegar aos brasileiros a gravidade do desequilíbrio mundial para enfatizar a tese do “desgoverno petista” e da inexorabilidade do arrocho prescrito pela gororoba neoliberal.

Sem esse truque religiosamente alimentado pelas manchetes, escaladas e colunas da mídia isenta, o poder de convencimento do discurso conservador perderia muito de sua eficácia nos dias que correm.

Tudo isso é sabido.

O que intriga é que o governo endosse o filtro em vez de rompê-lo, com serenidade, mas com o desassombro que a encruzilhada brasileira requer.

Ter a visão integral do jogo é decisivo para poder vencê-lo.

A narrativa justa das causas que dificultam a retomada do crescimento do país – seu componente interno e externo – é crucial para arregimentar a correlação de forças necessária a uma repactuação progressista do desenvolvimento.

Não se trata de um viés ideológico; é um fato objetivo: todos os mercados globais abriram 2016 em transe – ações, moedas e commodities.

E o que é mais importante para a discussão do passo seguinte do país: na raiz da crise global está o excesso de capacidade produtiva desprovida de demanda em cada nação e no conjunto das nações, motivo das desvalorizações cambiais em marcha.

É preciso dizê-lo com todas as letras: esse é o legado de um desequilíbrio estrutural instaurado por quarenta anos de hegemonia neoliberal, obra que o conservadorismo quer replicar agora no Brasil.

A diluviana sobra de capitais decorrente desse ciclo de fastígio das finanças e depauperação do mundo do trabalho, explica, num primeiro momento, a valorização despropositada das bolsas em economias rastejantes.

Explica, agora, a ressurgência das respectivas bolhas que começaram a estourar, de Pequim a Nova York.

A fuga para frente do capital fictício explica também a emergência de novas irrupções especulativas, a exemplo da representada pela exuberância irracional do mercado de futebol na China.

A nova especiaria amplifica um ponto de fuga antes concentrado em obras de arte, para arrematar jogadores em bases contratuais inalcançáveis pela maioria dos clubes profissionais do mundo.

A rapinagem da bola, de indústrias, serviços, moeda, etc., é quase sempre encarada como uma tragédia grega, algo que se abate sobre as nações sem que se saiba de onde vem e contra a qual a resistência apenas impõe maior sofrimento…

O fenômeno, como resumiu exemplarmente Zygmunt Bauman em entrevista ao El País esta semana, inaugurou uma era em que a política teve as mãos decepadas.

Ou seja, subtraiu-se do Estado o poder de agir ao anular a eficácia das soluções nacionais para desafios que foram globalizados. A crise do Estado-nação está na raiz do descrédito na democracia, sintetizou o filósofo polonês. E vice-versa.

É esse conjunto de bloqueios que cerceia o passo seguinte da história brasileira nesse momento. Explicitá-lo é um requisito para o discernimento necessário ao seu enfrentamento.

A única fatia restante da soberania nacional é a repactuação da sociedade e do seu desenvolvimento em escrutínios de amplitude democrática renovada.

Sem recorrer a esse trunfo derradeiro o governo ficará escravo das receitas e ajustes que agravam a sua fragilidade e aprofundam o seu descrédito.

O rame-rame do ajuste neoliberal consiste nisso: demolir o que foi conquistado para instituir o retrocesso como limite do possível e a exclusão como sinônimo de estabilidade.

Ao contrário do que acontece na China, na Europa, nos EUA, a dificuldade estrutural da economia brasileira hoje não é o excesso de capacidade, mas a carência de investimento para atender a uma demanda ascendente.

Aqui a solução é investir, não arrochar.

Atrelar o país à lógica mundial do neoliberalismo – como apregoa o conservadorismo – significa corroer 12 anos de esforços distributivos e sacrificar um dos maiores mercados de massa do planeta, para abraçar uma receita rentista que está na raiz dos abalos registrados na primeira semana do ano.

Quatro décadas de neoliberalismo esfarelaram a classe média dos EUA e desmontaram o estado do Bem-Estar europeu.

A renda real da outrora afluente classe média norte-americana encontra-se estagnada no nível de 1977, mesmo tendo o PIB crescido 50% no período.

Nunca a desigualdade foi tão extremada como agora na sociedade mais rica da terra.

Para recorrer novamente a Bauman, a tese neoliberal de que a concentração em cima, vazaria a riqueza por gravidade para baixo, “comprovou-se uma mentira”.

A fatia da renda nas mãos dos 20% mais ricos nos EUA hoje chega a 55%; declinando na base da pirâmide.

Não é menos regressivo o quadro europeu.

Segundo a socióloga portuguesa Raquel Varela, entrevistada por Carta Capital, a diferença entre um rico e um pobre na sociedade europeia era de 1 para 12, em 1945. Em 1980, passou a 1 para 82. Hoje, após o desmonte das bases econômicas da democracia social, atinge a desconcertante vastidão de 1 para 530.

Não por acaso, a disputa presidencial entre democratas e republicanos nos EUA este ano repõe em cores ainda mais vivas o confronto entre políticas fiscais para engordar os ricos ou investimentos públicos para resgatar os pobres.

Quem considera simplismo descrever assim a polaridade incrustrada pelo neoliberalismo na carne das nações, talvez mude de opinião diante das estatísticas divulgadas em 2014 pela consultoria Wealthx, de Cingapura (http://www.wealthx.com/home/).

A especialidade da Wealthx é prestar serviços aos superendinheirados supranacionais.

Ao mapear o calibre de sua clientela ela concluiu:

– 185.759 endinheirados dos quatro continentes detêm uma fortuna calculada em US$ 25 trilhões, nada menos que 40% do PIB mundial;

– o seleto clube comporta acentuada divisão interna de camarotes: o nível A é ocupado por 1.235 megarricos que controlam uma dinheirama quase igual a dois PIBs brasileiros: US$ 4, 2 trilhões.

A distribuição da riqueza nunca foi o forte do capitalismo.

Mas as últimas décadas de supremacia das finanças desreguladas conseguiram dar envergadura inédita à palavra desigualdade.

Quarenta anos de arrocho sobre o rendimento do trabalho nas principais economias ricas, associados a mimos tributários que promoveram o fastígio dos endinheirados, premiaram o capital celibatário que se autorreplica na especulação, sem agregar riqueza real à sociedade.

O conjunto enlouqueceu a engrenagem da desigualdade.

Portanto, não foi a crise que gerou o desfibramento das famílias assalariadas, hoje principal obstáculo à recuperação da economia mundial, oito anos após o colapso de 2008.

O desmonte do mundo do trabalho e a desigualdade decorrente do desmanche de organizações sindicais e trabalhistas é que explicam a singularidade da mais lenta e anêmica convalescença de uma crise capitalista desde o século 20.

A ordem dos fatores altera a agenda futuro.

E lança um alerta ao presente brasileiro.

A crise mundial não é passageira, nem admite solução estritamente financeira.

A democracia terá que intervir contra o despotismo do capital para devolver à sociedade o comando do seu destino e redefinir o destino do seu desenvolvimento.

Regular a redistribuição do excedente econômico, ferozmente concentrado nas últimas décadas na base do morde e assopra – arrocho de um lado, crédito e endividamento suicida do outro, falindo famílias e governos – é uma questão de vida ou morte.

Se quiser reforçar as imunidades do país em relação a uma crise mundial, assentada em boa parte no definhamento do poder de compra dos assalariados, o governo Dilma terá que repactuar a travessia em conversações democráticas com toda a sociedade.

Não apenas tentando “acalmar” os rentistas.

A tentativa atual em todo o mundo de “limpar o rescaldo” de 2008 passando uma mão de verniz nas ruínas – ou seja, sancionando novas bolhas e arrochando ainda mais os assalariados e os pobres – é mais uma forma de perpetuar a essência do problema do que enfrentar as suas causas.

Pior.

Preservar o modelo, agora com arrocho do crédito antes abundante – como se tentou na Europa, por exemplo – implica uma carnificina econômica e social.

Estamos falando da lógica que não saciará enquanto não abater, eviscerar e desossar integralmente o espaço do desenvolvimento e da soberania democrática no século 21.

Reduzir essa conflagração de interesses a um “esgotamento do desenvolvimentismo”, ou, mais rastejante ainda, “aos erros da nova macroeconomia lulopopulista”, como quer o sociólogo FHC, pouco agrega à agenda do desassombro requerida pela encruzilhada brasileira.

O país, insista-se à exaustão, está diante de provas cruciais.

Suas implicações para o presente e o futuro são avassaladoras.

Elas condicionam as escolhas que o Brasil terá que fazer, comprometem o destino da geração presente e da qualidade da cidadania futura.

Um governo democrático e progressista não pode se acoelhar diante do extraordinário na história de uma nação.

Sobretudo, não pode privar o discernimento popular da integral compreensão de suas implicações.

Transformar as escolhas do desenvolvimento em matéria da soberania política da sociedade é um requisito para devolver à democracia o poder de dizer não ao mercado.