Estado de guerra contra os curdos

Mais de 1100 intelectuais turcos de 80 universidades e 350 acadêmicos estrangeiros subscreveram um texto divulgado nesta semana, no qual se acusa que "em muitas cidades das províncias curdas o Estado turco condena os seus cidadãos à fome através do recolher obrigatório que se prolonga por semanas".

Curdistão turquia - AP/Ibrahim Usta

Para além da privação de gêneros e não raramente de serviços essenciais (fornecimento de água potável ou energia elétrica, por exemplo), o manifesto emitido pela organização Acadêmicos pela Paz denuncia o ''massacre deliberado e planeado [da população curda]", no que considera ser "uma grave violação das leis turcas e internacionais".

Os acadêmicos, de acordo com o documento citado pela Lusa, contestam igualmente a "versão oficial militar" que se tem escusado a distinguir entre mortos, feridos e detidos, ou entre guerrilheiros do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e civis, insistindo em anunciar diariamente a "neutralização" de "terroristas".

Em agosto do ano passado, na sequência da suspensão das conversações de paz com o PKK, iniciadas em 2012, o governo turco retomou as hostilidades contra a maioria curda do Sudeste do território. Desde então, dezenas de cidades em 19 distritos de seis províncias foram sitiadas, ocupadas pelas forças armadas e pela polícia de intervenção. A imposição de recolher obrigatório tem sido recorrente.

Estima-se que a operação punitiva em larga escala nas zonas curdas da Turquia tenha mobilizado em cinco meses mais de dez mil militares, acompanhados de armamento e veículos pesados. O contingente tem sido amplamente usado para desmobilizar com violência as manifestações populares que se multiplicam na região, em estado de levantamento insurrecional.

A vida de 1,4 milhões de pessoas tem sido infernizada e pelo menos 160 civis foram assassinados, entre os quais 29 mulheres, 32 crianças e 24 idosos, calcula uma organização de defesa dos direitos humanos turca. A mesma fonte nota que a repressão se agudizou em dezembro, com cerca de metade das vítimas mortais contabilizadas desde então.

O Partido Democrático do Povo (HDP), por seu lado, difundiu, em meados de dezembro, uma série de fotos que confirma assaltos a casas e detenções por parte das forças repressivas.

Representantes curdos e autoridades turcas parecem somente concordar numa questão: a situação é de tal forma grave que o perigo de evoluir para uma guerra civil é real.

Sufoco antidemocrático

Paralelamente ao esmagamento dos curdos no Sudeste da Turquia, o governo de Ancara leva a cabo uma poderosa investida antidemocrática. No dia 8 de janeiro, a polícia invadiu uma sede do HDP em Istambul e prendeu vários quadros e dirigentes do partido progressista pró-curdo, terceira força no parlamento e que o presidente turco Recep Erdogan pretende ver perseguida judicialmente.
Dias antes, a 3 de janeiro, as forças antimotim reprimiram um protesto contra a campanha anti-curda, realizado no centro de Istambul.

Dois deputados e dirigentes do HDP enfrentam acusações de "incitamento ao terrorismo", e outros tantos responsáveis de um jornal conotado com a oposição, o Cumhuriyet, foram, a 26 de novembro, presos por alegada "espionagem" e "revelação de segredos de Estado". O periódico denunciou a entrega de armas por parte dos serviços secretos turcos aos "rebeldes" sírios; os vínculos da Turquia com os grupos terroristas que semeiam a guerra nos vizinhos Síria e Iraque e a participação no roubo do petróleo extraído pelo chamado Estado Islâmico na Síria (o filho de Erdogan é suspeito de ser um dos cabecilhas do tráfico), assim como a intervenção de Ancara em ambos os países, nomeadamente contra as intituladas autodefesas curdas sírias, cuja capacidade de contrastar o domínio do EI tem sido notável.

A 23 de novembro, o vice-presidente do HDP foi alvo de uma tentativa de assassinato na cidade de Diyarbakir, a maior do Curdistão turco. O HDP tem sido um feroz opositor ao denominado Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), de Erdogan. A meio do ano passado, o partido conquistou importantes posições no parlamento turco, retirando, inclusivamente, a maioria absoluta ao AKP.

A 1 de novembro ocorreram eleições antecipadas e o AKP voltou a dispor de uma maioria absoluta, na sequência de uma sufrágio que a Comissão Europeia afirmou, em comunicado emitido a 10 de novembro, terem acontecido no quadro de um franco retrocesso da liberdade de expressão e no contexto de uma tendência negativa para o Estado de Direito. Os EUA felicitaram "o povo turco" pelo ato eleitoral.

A maioria absoluta reconquistada por Erdogan não lhe permite, porém, avançar sem obstáculos para a reforma constitucional que almeja. O presidente da Turquia e ex-primeiro-ministro do país tem como objetivo reforçar os poderes presidenciais. Nesse propósito, não regateia esforços e nas habituais palavras de ano novo dirigidas ao país deu mesmo como exemplo das virtudes e do funcionamento de um tal regime… a Alemanha nazi.

"Já existiram outros exemplos no mundo e na História. Podem ver isso olhando para o caso da Alemanha de Hitler", defendeu Erdogan.