Sangue e molho de tomate em Hollywood
Por uma dessas confluências que por vezes acontece – talvez seja o acaso, tão caro a Woody Allen – e determinam mudanças inesperadas na vida humana, dois filmes de produção americana remetem ao gênero reciclado do faroeste e ocupam, quase ao mesmo tempo, as telas de cinemas das principais cidades do país.
Por Léa Maria Aarão Reis*, na Carta Maior
Publicado 29/01/2016 16:26

Um deles é o festejado e grande favorito do Oscar deste ano, O Regresso, obra de um diretor mexicano, Alejandro Iñarritu, de 53 anos, educado nos Estados Unidos, co-autor de famosas produções realizadas no seu país de origem – como Babel, 21 gramas e Amores brutos – e cooptado, depois, pela indústria de Hollywood.
O outro é Os oito Odiados, de Quentin Tarantino, cineasta nascido no Tennessee, filho de índia cherokee e criado em Los Angeles, onde foi balconista de famosa locadora de vídeos em Manhattan Beach. Tarantino estudou arte dramática, é um cinéfilo apaixonado por filmes desde criancinha, e o seu filme The Hateful Eight está cotado na disputa pelo prêmio máximo do cinema americano, apenas pela sua trilha musical original – por sinal excelente, do mestre Ennio Morricone, que aos 87 anos, já aposentado, convidado pelo diretor, seu fã ardoroso, aceitou fazer este trabalho.
Qual a diferença entre o reconhecimento e o entusiasmo da grande maioria dos seis mil membros da Academia de Artes e Ciências de Hollywood – diga-se de passagem: dos quais 94% são brancos, 77% são homens e 86% têm mais de 50 anos – pelo filme protagonizado por Leonardo di Caprio, e a frieza com que é recebido o filme do californiano premiado, no passado, em Cannes, autor do festejado Cães de Aluguel e de Jackie Brown, seus primeiros filmes, reconhecidos clássicos do cinema americano – assim como Pulp Fiction (Palma de Ouro) e Kill Bill?
“A maioria dos filmes de Quentin Tarantino pós-Jackie Brown podem ser resumidos a um grande tema: vingança. Cada um deles se concentra em um personagem oprimido se vingando de um personagem opressor, conectando o pessoal ao social de forma habilidosa,” observa o crítico Caio Coletti, do Observatório do Cinema.
Em Os oito Odiados a ação se passa logo após o término da Guerra Civil americana, cuja questão central foi a abolição da escravatura. O filme discursa sobre racismo e a forma como o preconceito permeia relações sociais. No final, um segredo revelado é um recado mais poderoso que apenas uma vingança moral simplista.
São 187 minutos de filme (três horas e dez minutos) de tal modo absorvente que o espectador não sente o passar do tempo, tal a agilidade, o dinamismo e a inteligência cinematográfica da câmera e o talento de brilhantes atores, vários deles assíduos na filmografia de Tarantino: Samuel L. Jackson, Kurt Russel, Tim Roth, Michael Madsen, Bruce Dern e uma magnífica Jennifer Jason Leigh. Ela faz uma assustadora vilã, Dayse Domergue, a super odiada da história.
Confinados numa sala fechada de uma estalagem durante uma grande nevasca, o grupo passa as horas seguintes, juntos. Dois caçadores de recompensas tentam levar suas vítimas para a prisão, onde receberão dinheiro. Uma delas, a louca e agressiva Daisy Domergue, ainda está viva. No caminho, os três encontram um homem que diz ser xerife e pega carona com eles. A sala soa como uma panela de pressão. Tensão e violência seguem num crescendo cuja música acompanha a atmosfera com mestria. Sangue estilizado afoga espectadores e inunda a tela.
No caso de O Regresso, Iñarritu se detém na trajetória de Hugh Glass (Leonardo Di Caprio) que parte para o oeste americano disposto a ganhar dinheiro caçando. Atacado por um urso, é seriamente ferido por ele e abandonado à própria sorte pelo parceiro John Fitzgerald (Tom Hardy), que rouba seus pertences. Glass consegue sobreviver apesar do destino ingrato e inicia árdua jornada em busca de vingança.
Diretor de Birdman, Iñarritu tinha visto a carreira dar uma esfriada após o filme Babel. Sua briga com o companheiro de roteiro, o escritor também mexicano Guillermo Arriaga, determinou o ostracismo do diretor. Arriaga, que sempre declarou que “sem roteiro não existe filme”, não aceitava mais o protagonismo único do companheiro que não reconhecia nele a co-autoria dos filmes realizados em parceria.
Mas o cineasta se radicou em Los Angeles e voltou com força para disputar, este ano, um segundo Oscar consecutivo. A bela trilha musical do seu filme é de outro mestre, Ryuichi Sakamoto. E os efeitos sonoros, o som e a mixagem são irretocáveis, um cartão de visitas de grandiosa produção. O espectador se sente em meio a um extraordinário cenário. Para muitos, é mais uma obra do homem contra a natureza. Mas há quem ache que é mais que isso. A luta pela sobrevivência é parte importante da história salpicada de cenas e sequências brutais, de ultra violência. Sua poesia visual, no entanto, a segue.
Quais as semelhanças e as diferenças, então, desses dois neo-faroestes desta temporada de começo de ano, de dois diretores da mesma geração de uma indústria cinematográfica que pretende a renovação?
Enquanto Iñarritu preconiza, mesmo que de viés, a cartilha do neoliberalismo, da exaltação dos valores individuais, dos valores eminentes, americanos, e da meritocracia, que inclui a luta contra a natureza (!) e, mais abrangente, a batalha brutal diária, contemporânea, pela sobrevivência – e sai dela vencedor, é claro -, Tarantino, por outro lado, critica essa ferocidade, estiliza a violência radical, ousa rir dela pretendendo assim desmistificá-la e desconstruí-la, e transforma o sangue usado pelo seu colega em molho de tomate.
Eu ri muito durante o filme de Tarantino. Tanto que, sem perceber, acabei incomodando a platéia que o recebia à sério. Fui repreendida pelos psíus dos companheiros de sessão e precisei continuar rindo baixinho para não perturbar a ordem conservadora vigente.