Contra o Golpe de Abril de 2016

Por Matheus Felipe de Castro

O golpe de Estado travestido de processo “legal” de impeachment que está em curso contra a Presidenta da República legitimamente eleita com 54 milhões de votos tem raízes profundas na história de nossa formação social. Infelizmente, não é difícil identificar a contradição básica que reside na atuação das elites conservadoras que manipulam este “lobo em pele de cordeiro”.

Todos os governos populares ou nacionalistas que ousaram interferir nessa lógica de nosso funcionamento foram violentamente contestados pelas elites entreguistas ou seus veículos de poder, como é o caso da mídia.

Entendamos o contexto: o Brasil formou-se desde a colonização em torno de uma contradição básica, a tensão entre interesses da consolidação da nação (pressionando pela independência, pela autonomia, pelo desenvolvimento soberano, pela diversificação tecnológica) e os interesses das nações colonizadoras (pressionando pela dependência, pela subordinação, pela especialização produtiva em torno de produtos de baixo valor agregado). Se o capitalismo europeu se formou sob a lógica capital versus trabalho, a expansão do sistema econômico europeu para o Novo Mundo se operou sob a lógica centro versus periferia.

Essa lógica se revelou, historicamente, numa luta real e encarniçada entre desenvolvimentistas e monetaristas em torno dos destinos da nação brasileira. Entre aqueles que acreditaram que o Estado poderia ser instrumentalizado como um bastião revolucionário de construção da nacionalidade e de quebra de velhos automatismos que perpetuam velhas disparidades internas e vulnerabilidades externas e aqueles que acreditaram que as livres forças de mercado poderiam inserir o país num futuro de modernidade, desde que aceitando a sua posição dependente e subdesenvolvida no Concerto das Nações.

Foi assim que Vargas, no período 1951-1954, adotando uma postura nacionalista e independentista, afirmando o papel estratégico de um “capitalismo nacional”, sofreu ataques violentos das forças comprometidas com a inserção subordinada do Brasil no mundo. Ousou contrapor o poder incontestado de multinacionais, principalmente norte-americanas e por isso sofreu oposição acirrada da UDN, então representante dos interesses estrangeiros no Brasil. O discurso udenista, bem representado na figura do jornalista Carlos Lacerda, jamais revelou seus verdadeiros intentos. Era o discurso do “mar de lama” da corrupção, discurso moralista que se mostrou eficiente para catalisar setores pouco críticos das classes médias formadoras de opinião.

Foi assim que Jango, no período 1961-1964, lutando pela implantação do Plano Trienal (de autoria do gênio Celso Furtado) e de Reformas de Base que iam desde a educação ao sistema eleitoral, da conformação agrária brasileira à diversificação produtiva, chegavam ao cerne da contradição nacional acima apontada com a Lei de Controle da Remessa de Capitais, buscando garantir um desenvolvimento soberano de moldes nacionais, como sonhara Vargas 10 anos antes. Foi duramente atacado pelos velhos udenistas de plantão, ainda liderados por Lacerda e seus sequazes, sendo deposto por militares que instaurariam um regime de exceção que duraria 21 longos anos, deixando um rastro de morte, tortura e entreguismo. O primeiro ato desse governo: o AI-1. O segundo ato desse governo: a revogação da Lei de Remessa de Lucros, sancionada por Goulart.

Restaurada a normalidade institucional no Brasil, as contradições acima apontadas seriam aprofundadas. O avanço do neoliberalismo levaria ao aperfeiçoamento do processo de subordinação da nação brasileira. Os governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso dariam o start para os processos de liberalização da economia brasileira, finalmente realizando o velho sonho udenista que no passado demandava a quartelada.

A presidência de Luis Inácio Lula da Silva representou uma mudança radical desse paradigma. A afirmação de um Brasil democrático e soberano (está fora de cogitação nos limites desse artigo elencar todos os atos que Lula realizou para o avanço da inserção soberana do Brasil nas relações internacionais, os atos internos de valorização de nossa economia e os profundos programas sociais que retiraram milhões da linha da pobreza e a reafirmação cotidiana das liberdades individuais) sofreu contestação diuturna dos velhos udenistas de plantão, agora travestidos de Democratas e Socialdemocratas. O discurso: o velho “mar de lama” da corrupção foi mais uma vez instrumentalizado por uma mídia venal e entreguista.

Dilma representa a continuação do governo anterior, de reafirmação da soberania e do desenvolvimento nacional. Colocou o Estado a serviço da realização de políticas públicas de afirmação soberana. Garantiu a republicanização das instituições nacionais, permitindo inclusive que forças políticas oposicionistas ocupassem parcelas burocráticas do Estado, preparando, por dentro, o golpe que agora está em curso. Sua fraqueza se revelou em sua fortaleza: mulher incorruptível, de uma vida sem qualquer mácula, dura contra todo tipo de malfeito, desagradou profundamente setores que não encontraram respaldo para continuar em seus desmandos. E agora está sendo atacada com o mesmo discurso do “mar de lama” que já se tornou um patrimônio dos golpistas brasileiros de plantão.

Mudam os atores e atrizes. Permanecem os mesmos enredos. Porque a peça foi escrita sob um script que ainda não foi mudado. E que os verdadeiros democratas brasileiros devem assumir como sua tarefa enfrentar. Esse é o nosso papel: a afirmação da legalidade democrática, da soberania nacional e do desenvolvimento autônomo, previstos exemplarmente no projeto de afirmação nacional presente na Constituição de 1988. É essa afirmação radical e sem concessões da democracia e da legalidade que assusta aqueles que se acostumaram a ver o Estado brasileiro servir às elites desde a colonização. É essa afirmação que assusta aqueles que se espantam com um Estado redistributivo que finalmente insere o povo como agente de sua própria história, como detentor real da soberania. É essa legalidade que as elites se acostumaram a violar todas as vezes que seus interesses são colocados em risco.

Não há espaços para meias palavras. Não há espaço para neutralidades. A história apontará com o dedo em riste para aqueles que se posicionaram a favor do Golpe de Abril de 2016 e que mais uma vez colaboraram para manter íntegra a velha lógica centro-periférica da qual ainda não conseguimos nos livrar, rumo à construção de uma nação politicamente soberana, socialmente justa, regionalmente equilibrada, economicamente desenvolvida e humanamente emancipada.

*MATHEUS FELIPE DE CASTRO, Doutor em Direito pela UFSC, Professor de Direito Constitucional na mesma instituição e Professor Titular do Mestrado em Direitos Fundamentais da UNOESC.

Florianópolis, 17 de abril de 2016.