Publicado 13/05/2016 16:47

Na teoria, um homem e uma mulher se unem por amor e permanecem unidos até que a morte — ou desamor — os separe. Não deixa de ser a mesma coisa. No desamor, um morre para o outro ou ambos morrem para si mesmos e precisam recuperar a vida, seja lá o que for vida antes do túmulo. Talvez adrenalina?
Os americanos têm a maior indústria de entretenimento do mundo porque não sabem se divertir sem parafernália. Resolvem-se com a adrenalina que a tecnologia dispara no organismo. A adrenalina torna-se um vício, que os sacia quando conseguem envolver-se nos filmes de ação e games com efeitos especiais, lutas contra perigos e inimigos. Irreais, não importa, desde que convençam a mente de que existem e ameaçam.
Esta é a triste história da amazing Amy, uma criança comum a não ser pelo heroísmo que seus pais inventam para ela e publicam em uma série histórica de livros. Amy ajustou-se aos fatos dos livros porque os da vida real eram fracassos, fracassos que nunca precisou enfrentar, frustrações que nunca precisou elaborar. Cresceu loira, bela e inteligente, não o bastante para livrar-se da armadilha dos pais.

Casou-se com um caipira, escritor mediano, dependente da família, porque a Amy de carne e osso continuava sendo a fracassada da infância. E, no repetido papel, fez o que os pais ensinaram: transformou o marido num bonitão sortudo por laçar a incrível Amy.
Casamento é o pior cenário para aventuras emocionantes. Amy talvez planejasse escrever o livro do “amor de dar inveja”, desta vez sem a supervisão dos pais. Não deu certo. O caipira perdeu o emprego, o casal deixou Nova Iorque e foi parar no Mississipi, os fãs da amazing garota ficaram no passado. A heroína infantil morreu, o bonitão com quem se casou traiu. Foi o bastante para Amy iniciar a busca desenfreada de adrenalina no único universo conhecido: o das histórias.
Valem aqui parênteses: Amy e o marido gostavam de jogos. Ela inventava uma caçada ao tesouro a cada aniversário de casamento, pistas com muito suspense e risco de perigo. O marido guardara a montanha de jogos de tabuleiro da infância, levava para a irmã gêmea quando ia para o “The Bar”, lanchonete da qual eram donos.

Do inofensivo tabuleiro, o marido e a irmã gêmea foram levados a uma caçada ao tesouro com todas as pistas para incriminá-los num crime: o assassinato de Amy.
A adrenalina voltou, o público montou guarda na frente da casa da desaparecida, queriam a cabeça do marido assassino. Amy deixou um livro pronto para publicação: o diário do seu planejado assassinato.
A reviravolta acontece quando o marido decide encarnar novo papel, arrependido e apaixonado diante de milhões de pessoas num programa de tevê campeão de audiência. Quem não gosta de ver um homem bonito sinceramente, ao que parece, desesperado com o sumiço da mulher?
Os personagens do filme Garota exemplar (tradução do título "Gone Girl" para o português) usam técnicas de storytelling, tão popular hoje no mundo acadêmico e corporativo. Materializam o “cozy” (situação em que um crime é resolvido por amadores num cenário familiar, gênero Agatha Christie).
O casal Amy e o caipirão (Rosamund Pick e Ben Affleck) não existe, mas o tédio que vivencia, sim. O amor é inventado, mas o vício na adrenalina que leva casais a traições for fun, a separações em série, à alienação do momento — que não sabem viver intensamente a não ser como um jogo mental — idem. Storytelling é didático e divertido, mas quando pessoas de verdade utilizam o método para se lançarem em uma vida artificial é preocupante.
Não me sinto capaz de diagnosticar Amy como sociopata, porque assassina a sangue frio; não posso dizer que o marido seja neurótico ou maluco porque acaba topando o jogo, acaba indo para os holofotes e concorda com a gravidez, o “grande final” providenciado por Amy.
Vão colocar uma criança na cena de amor e superação que virou o seu casamento, uma história irreal de sucesso, que venderá livros, filmes, games. Nunca mais desemprego ou obscuridade para o casal.
O final do filme aterroriza. Porque tem a ver com “viveram felizes pra sempre”, a fábula das fábulas, e também com amorteceram a consciência contra o menor vestígio de ética. Pra sempre.
O amor é química, sem dúvida, mas não sobrevive de adrenalina. É o hormônio errado quando se trata de prolongar histórias felizes, porque precisa do perigo para inundar a circulação. Quando exagerada, pode levar ao infarto, ou ao crime, como no filme da incrível Amy.
Precisamos reaprender a contar história com os velhos, eles resgatam um sentido para a vida quando recontam o passado. Provavelmente suprem-se com ocitocina, o hormônio do bem-estar, quando revivem amores, quando interagem (presencial e não virtualmente) com amigos, família, netos.
Outros hormônios bem-vindos a partir de histórias que impactam, emocionam, mexem com a nossa química: serotonina (ação sedativa e calmante), dopamina e a noradrenalina (energia e disposição).
Nada contra adrenalina, mas tudo contra virar personagem real na cena de um crime quando a vida revela nossa incapacidade de encontrar um mínimo de prazer na rotina. Que é a vida e disso sabemos desde que os gregos nos contaram a história de Sísifo.