A China cresce no setor elétrico brasileiro

Os chineses adquirem parte da CPFL e querem mais, mas o governo parece ignorar os interesses do País.

Por Carlos Drummond

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Noticiada só como um grande negócio, a venda, pela Camargo Corrêa, de 23% do controle da CPFL, uma das maiores empresas de energia do País, à chinesa State Grid, principal grupo mundial do setor, envolve interesses de longo prazo e desnuda a ausência de políticas estratégicas do governo para a economia.

A transação de quase 6 bilhões de reais foi anunciada na sexta-feira 1º pela construtora, impedida há dois anos de firmar contratos com o poder público por implicação na Operação Lava Jato. Com dificuldade de acesso a crédito bancário, a empreiteira enfrenta problemas de gestão de caixa a curto prazo.

O bloco controlador inclui os fundos de pensão Previ, dos funcionários do Banco do Brasil, com 29,4% das ações, e dos empregados da Cesp, Petrobras, empresas de telefonia e Sabesp, com 15,1%. A venda dessas participações é dada como certa, pois as instituições de seguridade precisam fazer caixa para cobrir déficits acumulados nos últimos anos.

Os ativos da State Grid no País incluem 5.785 quilômetros de linhas de transmissão, 12.803 megawatts de capacidade e 14 subestações. A sua próxima aquisição deverá ser a Eletropaulo, fornecedora da capital paulista, preveem analistas. Outro objetivo são firmas do setor de energia eólica, de notável expansão recente com indústrias, tecnologia e rede de fornecedores nacionais financiados pelo BNDES.

A notícia do negócio provocou uma alta de 8,41% no preço dos papéis da CPFL Energia, para 22,2 reais, na Bolsa de Valores de São Paulo. Computados o desempenho técnico e econômico e os baixos índices de falhas, a brasileira é considerada uma das melhores companhias de energia do País.

No ranking da agência reguladora Aneel, três das dez distribuidoras com menos interrupções são do grupo CPFL. Não existiriam débitos escondidos, dívidas não reconhecidas nem situações geradoras de passivos não previstos, atestam especialistas.

A sua área de concessão é a mais industrializada e rica e inclui o Rio Grande do Sul, parte de Santa Catarina e São Paulo, exceto a capital. No ano passado, o lucro atingiu 875,2 milhões de reais e a geração de caixa, 3,75 bilhões. A posição atingida é atribuída, em grande parte, à gestão do presidente Wilson Ferreira Jr., que deixou a CPFL no começo do mês e assumiu a presidência da Eletrobras.

Além da possibilidade de assumir o controle da maior empresa privada integrada, com distribuição, geração e transmissão de energia elétrica, os chineses podem alcançar também o primeiro lugar em capacidade instalada hidrelétrica através da Three Gorges, prevê o site Ilumina.

A companhia, que no mês passado adquiriu duas hidrelétricas da Cesp, desbancaria Furnas, com ativos incorporados à Eletrobras por força da Lei nº 12.783, de 2013, e hoje com só 2,9 mil megawatts próprios. Segundo a Agência Internacional de Energia, de 2005 a 2012 a China investiu 18,3 bilhões de dólares no setor de energia no Brasil.

Para o economista Antonio Corrêa de Lacerda, da PUC de São Paulo, a possibilidade de o capital estrangeiro assumir uma posição estratégica da área de energia deveria ser analisada também da perspectiva dos interesses do País.

“O Estado e as empresas nacionais não precisam estar sempre à frente de todos os empreendimentos, mas a falta de um marco regulatório com limites e responsabilidades para as firmas é preocupante, pois não há controle sobre as suas políticas de compras e planos de investimentos.”

A desnacionalização afeta o balanço de pagamentos, com a remessa de lucros e dividendos em dólares aos sócios estrangeiros e, “se não houver uma fonte de receita para bancar essa saída, ocorrerá um desequilíbrio intertemporal nas suas contas de capitais, serviços e rendas”.

Os números do balanço de pagamentos de maio mostram a magnitude do problema. O saldo positivo das transações correntes foi de 1,2 bilhão de dólares, e as despesas líquidas de remessas de lucros e dividendos atingiram 1,7 bilhão.

Outro aspecto é a visão de desenvolvimento e política industrial. Quando há empresas nacionais relevantes, controladas pelo Estado e privadas, é mais fácil obter o compromisso do conjunto com objetivos de localização de unidades, conteúdo local, desenvolvimento de inovações e manutenção de empregos.

A desnacionalização dificulta o processo. “Claro que sempre é possível negociar, mas há o problema da falta de clareza do marco, dos objetivos do País. Outro nó é que lidamos muito mal com o capital estrangeiro.

Os maiores grupos do mundo operam no Brasil, mas não há uma política de relacionamento no sentido de aproveitá-los mais para o nosso desenvolvimento.” O economista defende o estabelecimento de critérios que representem alguma forma de compromisso.

As exigências de um marco regulatório deveriam incluir definições quanto às tarifas e aos preços, pois sempre há o risco de surgir um monopólio privado com grande poder de formação de preços. Outros pontos são as políticas de investimentos, localização e desenvolvimento local das empresas.

“Existem limites nos acordos internacionais e na própria Organização Mundial do Comércio quanto a exigir desempenho de investidor estrangeiro, mas, apesar disso, é possível estabelecer algumas regras e compromissos mútuos capazes de minimizar os riscos do processo de desnacionalização.”

Para o professor de Economia da PUC-SP Gabriel Galípolo, “os chineses estão com muito apetite de aquisições no setor de energia, em parte porque as tarifas têm uma indexação ao dólar através da correção pelo IGP e proporcionam um hedge ou proteção contra as oscilações da moeda estrangeira”.

A política de valorização do dólar, sujeito também às oscilações da economia mundial, visa combater a inflação, mas barateia as empresas locais e estimula a desnacionalização. “Desde o início do ano, o País vive outro ciclo de apreciação da moeda motivado principalmente por fatores externos. Mais uma vez fomos campeões de valorização cambial entre as moedas mais voláteis”, diz Pedro Rossi, professor de Economia da Unicamp. Em uma semana, o real apreciou 5% em relação ao dólar.

Uma alternativa para a situação do setor elétrico e outros agentes e concessões públicas em dificuldades seria o alongamento de prazos das dívidas e uma injeção de recursos pelo Tesouro Nacional, com impacto na dívida pública. A opção é improvável, dada a situação da economia e resistência a uma revisão do dogma do equilíbrio fiscal, entre outros motivos.

Tempos atrás era inimaginável um fundo de pensão ou mesmo um grande grupo nacional decidir a venda de uma companhia de porte como a CPFL só por uma questão relativa ao seu próprio balanço.

Havia a praxe da consulta ao governo federal, que tinha uma capacidade de articulação do capital nacional público e privado. O quadro mudou, empresas e fundos sentem-se abandonados por Brasília e tomam as decisões com base apenas nos seus interesses.

Um exemplo de atitude é a ação da Alemanha, no mês passado, diante do assédio chinês a indústrias globais de ponta, incluída a proposta de aquisição da fabricante de robôs Kuka, de Augsburg.

A primeira-ministra Angela Merkel, seis ministros de Estado e os presidentes da Volkswagen, BMW, Siemens, ThyssenKrupp, Lufthansa e Airbus voaram a Pequim para discutir os interesses econômicos em jogo com o primeiro-ministro Li Keqiang e o presidente Xi Jinping. No Brasil, não se tem notícia sequer de um esboço de reação do governo interino diante da escalada estrangeira no setor de energia elétrica.