O impeachment e a criminalização da política fiscal

O processo de impeachment se baseia em uma reinterpretação que passa a considerar ilegal aquilo que nunca o fora, com consequências graves para democracia.

Por Pedro Paulo Zahluth Bastos*

Anastasia - Lula Marques

O parecer do relator da Comissão Especial do Impeachment, senador Antonio Anastasia, tem longa passagem em que se defende da acusação de criminalização da política fiscal. Nele, tece longas considerações sobre 1) a legitimidade de avaliar-se juridicamente a política fiscal; 2) o fato de que a Lei de Responsabilidade Fiscal não inibe uma política keynesiana que recorra a deficit primário.

O parecer confunde as duas coisas. A acusação de que o processo de impeachment envolve a criminalização da política fiscal não alega que foi criminalizada uma política contracíclica de corte keynesiano. Pelo contrário, a política fiscal seguida ao longo de 2015 foi pró-cíclica, marcada por grande austeridade.

Ela cortou o gasto público mais do que imaginado na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA), aumentou alíquotas de impostos, elevou preços administrados por empresas estatais e tentou eliminar desonerações fiscais em um esforço desesperado, liderado por um austero a toda prova, o ex-ministro Joaquim Levy, para alcançar uma meta fiscal irrealista, dada a velocidade sem precedentes da queda da arrecadação fiscal.

É por ser irrealista que nova meta fiscal, prevendo deficit primário, foi aprovada pelo Congresso Nacional em 3 de dezembro de 2015. Não obstante seu irrealismo, ela foi buscada com grande afinco pelo governo federal. O gasto público, de fato, foi cortado em termos reais mais de 3% em relação ao nível de gastos de 2014, segundo dados do Banco Central. A despeito disso, e do esforço de aumento da receita, a recessão provocou uma queda mais que proporcional da arrecadação tributária.

É inegável que a política fiscal deve seguir algum arranjo jurídico-legal. O problema é que este arranjo jurídico-legal não pode ser reinterpretado para imputar ilegalidade ao que era permitido. Se isso é feito, ao invés de transmitir estabilidade, a reinterpretação da regra produz instabilidade política e fiscal ao criminalizar o que era prática comum.

A reinterpretação da Lei de Responsabilidade Fiscal

O problema é que a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) passou a ser interpretada de uma nova maneira em 2015. Passou a ser exigido não apenas que o governo central cumprisse a meta fiscal, mas que cortasse o gasto acompanhando a variação da receita tributária bimestralmente, o que não era feito em anos anteriores. Essa exigência passou a ser feita mesmo que a queda da receita não resultasse de renúncia de receita (a ser compensada com corte de gasto ou nova fonte de receitas), mas de uma recessão. A reinterpretação da LRF não faz diferença entre renúncia de receita (objeto de decisão responsável ou não do governante) e frustração de receita (fora do controle decisório do governante).

Acontece que é impossível realizar política contracíclica, como considera desejável até o parecer do senador Anastasia, se for obrigatório cortar despesas sempre que a arrecadação se frustre com uma recessão ou mesmo uma desaceleração cíclica. Em 2015, no entanto, a mudança da interpretação da LRF criminalizou não uma política contracíclica, mas uma das políticas fiscais mais austeras já realizadas no Brasil, certamente a mais austera desde a redemocratização.

Na prática, dado o grau de rigidez das despesas obrigatórias no Brasil, a nova interpretação da LRF só é viável, em situação de recessão e forte queda da arrecadação tributária como em 2015, se despesas obrigatórias forem descumpridas, ou seja, se o cumprimento da nova interpretação da LRF forçar o descumprimento de determinações constitucionais consagradas.

De fato, como já afirmado, o nível da despesa pública não desrespeitou o nível definido pela LDO e pela LOA. Pelo contrário, ele foi muito menor, à medida que o governo anunciava cortes novos (contingenciamentos) a cada revisão bimestral ao longo de 2015.

Ademais, a LRF tem uma cláusula de escape que permite que estados e municípios desrespeitem metas caso o PIB cresça a uma taxa inferior a 1% (positivo). A meta fiscal para o governo federal não tem essa flexibilidade, e a nova interpretação da LRF aumenta a rigidez mesmo quando o PIB decresce quase 4% e o gasto público cai mais do que 3%! A nova interpretação da LRF criminaliza, no fundo, a queda da arrecadação e a recessão.

Como se não bastasse a reinterpretação da LRF, confundindo renúncia de receita e frustração de arrecadação, a solicitação de impeachment foi lavrada antes do final do ano fiscal, sendo impossível saber se a meta fiscal, alterada em 3 de dezembro, seria alcançada ou não no final do ano. Modificada a meta, a LOA foi respeitada no final de 2015, como o próprio parecer do senador Anastasia admite.

A despeito do grande esforço fiscal para reduzir gastos, a queda da arrecadação inviabilizou o alcance da meta fiscal. Quando é a queda não prevista da arrecadação, e não o aumento de gastos que produz o estouro da meta, a mudança de intepretação da LRF pode criminalizar mesmo uma política fiscal contracionista, ou seja, pode criminalizar qualquer governo que enfrentar uma forte frustração de arrecadação determinada por recessão.

A má leitura de John Maynard Keynes

Nunca se alegou que o processo de impeachment se apoia na criminalização de uma política contracíclica. Não obstante isso, o parecer do senador Anastasia tece longas considerações sobre a política fiscal proposta por Keynes. Quanto a isso, é verdade que Keynes alegava que era melhor garantir um volume amplo de investimentos públicos para limitar flutuações cíclicas. Afinal, se o investimento privado era muito sujeito à instabilidade, o planejamento e coordenação de investimentos públicos reduziria a instabilidade do investimento privado ao assegurar um nível adequado de demanda efetiva.

Isso não quer dizer que Keynes descartasse a realização de políticas contracíclicas para evitar que uma desaceleração se transformasse em recessão, ou mesmo para reverter uma recessão. Ou seja, Keynes considerava melhor prevenir do que remediar uma desaceleração cíclica, mas não descartava remediar uma desaceleração cíclica quando ela fosse inevitável.

O que é mais importante: Keynes nunca defenderia realizar uma política pró-cíclica em uma recessão. Keynes considerava necessário e possível reduzir o crescimento da dívida pública durante uma expansão cíclica, quando o crescimento do PIB e a arrecadação tributária realizam essa redução organicamente. Por isso, dizia que a expansão (boom), e não a recessão (slump) seria o momento certo para a austeridade.

Muitos economistas ortodoxos, neoclássicos, pré-keynesianos, neoliberais, descartam a realização do tipo de proposta preventiva feita por Keynes, ou seja, a expansão compensatória do investimento público planejado, mas curiosamente a citam apenas para descartar também a política contracíclica que Keynes achava necessária quando não fosse possível prevenir uma recessão, sendo desejável a conter e reverter.

Curioso, também, é que os economistas que diziam ter sido impossível aumentar o gasto público em 2015 por conta de limitações ao endividamento público, não tenham ainda se retratado depois que o deficit realizado em 2015, e o previsto para 2016 e 2017 pelo governo interino, demonstra existir grande capacidade de ampliação do endividamento público, mesmo em cenário de queda de arrecadação tributária e taxas de juros exageradas. Melhor teria sido não os ouvir e, ao contrário de seu conselho, ter realizado uma política contracíclica que recorresse ao deficit primário para evitar uma recessão, ao invés de experimentar um deficit primário por causa da recessão que a política fiscal pró-cíclica contribuiu para consolidar.

O parecer cita, equivocadamente, alguns economistas filiados à Associação Keynesiana Brasileira (AKB). Quanto ao economista Bresser-Pereira, ele admitiu recentemente o equívoco de ter apoiado a política pró-cíclica em 2015, alegando ter confiado na previsão de crescimento das consultorias em janeiro de 2015 (0,5% de crescimento) e imaginado que seria feito um ajuste e não um arrocho (revista Brasileiros, n. 107, jun. 2016, p. 72).

Quanto ao economista José Luiz Oreiro, não é mais membro da AKB, da qual diz ter se desfiliado por motivos políticos (antes de ter apoiado o ajuste fiscal de 2015 e o impeachment). A propósito, em maio de 2016, a imensa maioria dos membros da AKB se posicionou contra o ajuste pró-cíclico e resolveu assinar manifesto contra o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, afirmando a vulnerabilidade de seus motivos.

O outro economista da AKB citado no parecer, Luiz Fernando de Paula, também se manifestou contrariamente ao impeachment e à austeridade pró-cíclica, tendo assinado o primeiro manifesto contra a austeridade organizado por mim em novembro de 2014, prevendo o efeito econômico desastroso do austericídio econômico.

Em suma, desmontando a confusão feita pelo parecer do senador Anastasia, nunca se alegou que o processo de impeachment se apoia na criminalização de uma política contracíclica. É mais sério: o processo de impeachment se baseia em uma reinterpretação da LRF que passa a considerar ilegal aquilo que nunca o fora, casuisticamente, com consequências graves para a execução da política econômica e, mais importante, para a democracia brasileira.