Vinícius Madureira: O impeachment como paródia de Justiça

Antes da fatídica sessão da Câmara, de 17 de abril, que aprovou o prosseguimento do processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff no Senado, o editorial de 26 de março da revista liberal inglesa The Economist, intitulado “Time to Go”[1], recomendava singelamente à Presidenta “o jeito melhor e mais rápido” de deixar o Palácio do Planalto: “renunciar antes de ser posta pra fora” pelos congressistas.

Por Vinícius Madureira*

Dilma a Revista Forum - Ricardo Stuckert Filho

 Ainda no mesmo texto, a própria revista paradoxalmente reconhece que o seu impeachment é “injustificável”, ante a inexistência de crime, e soa mais como “um pretexto para expulsar uma presidente impopular”, não sem fazer ainda outras observações contrastantes: o PMDB de “Mr. Temer” também está enovelado no escândalo de corrupção da Petrobras; quase dois terços dos deputados são acusados dos mais diversos ilícitos (“representatives of a discredited ruling class”)…

Então, a premissa menor (“renúncia da Dilma”) num silogismo absurdo que conclui com a sacrificiosa chance de um recomeço (“Her departure would offer Brazil the chance of a fresh start”) seria mesmo o “jeito melhor” de sair da crise político-econômica?

Tal publicação não lembra a cômica cena do filme “Judge Dredd” (1995) em que o personagem policialesco do ator Sylvester Stallone dá voz de prisão pelo suposto crime de “sabotagem dolosa de um andróide público” a um hacker inofensivo, que havia apenas tentado se proteger de um tiroteio selvagem entre gangues no interior de um expositor de bebidas futurístico?

“Juiz Dredd: –– Condenação automática a cinco anos de prisão. Como você se declara?

Herman Fergusson: –– Inocente?!

Juiz Dredd: –– Eu sabia que você iria dizer isso.

Herman Fergusson: –– Cinco anos?! Não! Não! Eu não tive chance! Eles estavam se matando lá fora!

Juiz Dredd: –– Você podia ter se atirado pela janela.

Herman Fergusson: –– Quarenta andares? Seria suicídio!

Juiz Dredd: –– Talvez. Mas é lícito.”

A ideia subjacente à sugestão de que o acusado dê cabo de sua própria vida (biológica, política etc.) para escapar de um processo penal kafkiano é uma amostra do sistema judiciário em seu aspecto mais ensandecido.

Por isso, a proximidade do julgamento da Presidenta pelo Senado, a se iniciar na próxima semana (precisamente no dia 25.08.2016), é marcada por um forte senso prévio de causa perdida, antecipado com irretorquível desalento em “O Processo” de Kafka: “Ter um processo desses às costas significa já ter perdido” [2]. Diante de um tribunal estapafúrdio, o julgamento do inocente Josef K., cuja condenação é por todos pressentida, é mais um tipo de “paródia da justiça” –– ela pretende ser justiça, enquanto é simplesmente a demonstração de poder bruto ou corrupção se fazendo passar por justiça”. [3]

Partilha da mesma lógica aberrante o raso argumento de que o impeachment não se trata de um golpe branco simplesmente por estar previsto na lei, por ser “lícito” (assim como o é jogar-se janela afora…). Não à toa Althusser vislumbre a lei como pertencente tanto ao Aparelho Repressivo de Estado, que “funciona pela violência” (para assegurar a manutenção das “condições políticas de reprodução das relações de produção, que são, em última análise, relações de exploração”), quanto ao sistema de Aparelhos Ideológicos de Estado.[4]

Logo, o impeachment (ao exercício da presidência –– interdição ao gozo propriamente dito, em lacanês) como medida legal considerada constitucionalmente justa, subjaz a ideia da Justiça não como o fim intrínseco ao Direito, mas como a ilustração exemplar da concepção nietzschiana de justiça enquanto balanço de poder, herdeira de uma tradição filosófica que remonta aos gregos sofistas.[5]

“A justiça (equidade) tem sua origem entre aqueles que têm potência mais ou menos igual, como Tucídides (no terrível diálogo entre os enviados atenienses e mélios) o concebeu corretamente: onde não há nenhuma supremacia claramente reconhecível e um combate se tornaria um inconseqüente dano mútuo, surge o pensamento de se entender e negociar sobre as pretensões de ambos os lados; o caráter da troca é o caráter inicial da justiça. Cada um contenta o outro, na medida em que cada um obtém o que estima mais do que o outro. Dá-se a cada um o que ele quer ter, como doravante seu, e se recebe em compensação o que se deseja. Justiça é, portanto, retribuição e intercâmbio, sob a pressuposição de uma posição mais ou menos igual de potência; assim a vingança pertence originariamente ao domínio da justiça, ela é intercâmbio. Assim também a gratidão. – Justiça remete naturalmente ao ponto de vista de uma autoconservação inteligente, portanto, ao egoísmo daquela reflexão: “Para que haveria eu de danificar-me inutilmente e talvez nem sequer alcançar meu alvo?” –– Isso quanto à origem da justiça. (…)” [6]

Aqui acontece algo como no domínio da estereoquímica. Justiça é a imagem especular da força e vice-versa: ambas são estruturas reciprocamente enantiomórficas, isto é, idênticas e, ainda assim, contrárias –– como a sobreposição das mãos direita e esquerda de um mesmo corpo, num clássico exemplo didático do conceito de quiralidade ––, tão somente passíveis de diferenciação a partir da observação empírica de seus comportamentos (contrastantes, via de regra) quando dispostas em determinado ambiente/organismo.

A essa noção da justiça parece estar de bom grado e fazer coro de consenso toda uma geração de pensadores tidos o mais das vezes por antípodas entre si ou, no melhor dos casos, heterogêneos, tais como Trasímaco, Platão (A República e Górgias), Hobbes, Espinosa, Pascal, Nietzsche, Freud, Lacan e, ultimamente, Slavoj Žižek.

O gênio literário de Pascal não careceu, por sua vez, de lançar mão de analogias e comparativos tomados de empréstimo das ciências puras para, em duas célebres seções –– de inopinada aproximação espinosista, transcritas em parte a seguir no que têm de oportuno –– de seus “Pensamentos”, irmanar justiça e força: justiça seria apenas a força novamente, e como que sua anistia após uma paulatina proscrição.

“É justo que o que é justo seja seguido. É necessário que o que é mais forte seja seguido. A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica. A justiça sem força é contradita, porque há sempre maus; a força sem a justiça é acusada. É preciso, pois, reunir a justiça e a força; e, dessa forma, fazer com que o que é justo seja forte, e o que é forte seja justo.

[…]

Sem dúvida, a igualdade dos bens é justa; mas, não podendo fazer que seja força obedecer à justiça, fez-se que seja justo obedecer à força; não podendo fortificar a justiça, justificou-se a força, a fim de que o justo e o forte existissem juntos, e que a paz existisse, que é o soberano bem.” [7]

E o quê da inspiração pascaliana acima não sobressaiu, dois séculos mais tarde, no espírito e na própria expressão estilística desse trecho do famoso opúsculo “A Luta pelo Direito”, do jurista alemão Rudolf von Jhering:

“(…) a justiça sustenta, em uma das mãos, a balança, com que pesa o Direito, enquanto na outra segura a espada, por meio da qual se defende. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é a impotência do Direito. Uma completa a outra. O verdadeiro Estado de Direito só pode existir quando a justiça bradir a espada com a mesma habilidade com que manipula a balança”? [8]

Curiosamente, a mesma figura de linguagem, do tipo cárneo, serviu também à pena discursiva do revolucionário francês Robespierre para ombrear –– seguindo, por assim dizer, o método pascaliano de identificação paradoxal –– a virtude e o terror: “Si el principal instrumento del Gobierno popular en tiempos de paz es la virtud, en momentos de revolución deben ser la virtud y el terror: la virtud, sin la cual el terror es funesto; el terror, sin el cual la virtud es impotente.”[9]

O crucial naqueles dois primeiros excertos, os quais explicitam por meio de uma sofisticada anadiplose a unidade radical entre direito e poder, é, segundo Žižek, a sua “lógica formalista subjacente”, ou seja, a prevalência da forma da justiça em detrimento de seu conteúdo, mesmo que esta, assim, venha a assumir paradoxalmente os contornos de seu oposto, a própria injustiça. Uma tal confusão e cizânia entre a essência e a aparência da justiça constituiria, ainda conforme o filósofo esloveno, a “própria noção da justiça: a justiça é “em si mesma”, em sua própria concepção, a forma da injustiça, a saber uma “força justificada”.

“[…] Entretanto, e se a justiça “em si”, em sua própria concepção, for uma paródia? Não é isso que Pascal sugere quando conclui, resignadamente, que se o poder não pode ir à justiça, então a justiça deve ir ao poder?”[10]

Dito anteriormente, a ilustração cabal dessa ambivalência ‘direito-força’ foi trazida às salas de cinema pelo ator Sylvester Stallone, em seu papel no filme “Judge Dredd”, personificando o severo Estado Policial que houve por bem (re)assumir, a uma só feita, as funções de juiz, júri e carrasco, para se contrapor à altura ao mundo do crime que não colapsou senão o próprio Estado Democrático de Direito em meados de um séc. XXII previsivelmente apocalíptico. Note-se que o nome do juiz “Dredd” soa para os ouvidos anglófilos exatamente como “Dread”, adjetivo que designa algo terrível, pavoroso, medonho. A peripécia da narrativa, aqui no sentido grego, consiste no fato de que também o impiedoso juiz Dredd se vê ele próprio enredado, mais tarde, num julgamento por um crime que não cometera –– e terá sido por acaso seu prenome seja semelhante ao do infortunado personagem kafkiano?

A inconsistência –– conceitual e metareferencial –– chega fidedignamente ao extremo ao se ter notícia de que o juiz Dredd de Stallone não tinha nada a ver com o juiz Dredd mesmo, personagem homônimo dos quadrinhos em que o filme se baseou, segundo lamento do próprio autor John Wagner (esta seria porventura a razão pela qual o filme fracassou crítica e comercialmente). Assim é que Nietzsche diz farejar “um quê de verdade, de possibilidade de verdade, por trás do princípio dialético-real, com que Hegel, em seu tempo ajudou o espírito alemão a conquistar a Europa –– “a contradição move o mundo, todas as coisas contradizem a si mesmas. (…)”.[11]

Para arrematar, então, na língua de Arendt e Häberle, o Direito não é de ser vislumbrado pela sociedade aberta de seus intérpretes como um dado normativo cujo sustentáculo seria um lógos marcado pelo compasso de uma lógica linear consistente, mas, antes, um construído cujas próprias inconsistências (formais, materiais, simbólico-imaginário-reais, etc.) refletem espectralmente o páthos da imanente contradição ideológica e social do Real.

NOTAS

[1] Disponível em: http://www.economist.com/news/leaders/21695391-tarnished-president-should-now-resign-time-go. Acesso em 21 de agosto de 2016.

[2] KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 99, itálico nosso.

[3] Žižek, Slavoj. Órgãos sem corpos. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2008, p. 63, itálico nosso.

[4] ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado: Notas para uma Investigação. in Žižek, Slavoj. Uma Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 5ª ed., 2013, ps. 118 e 141.

[5] “(…) Por outro lado, Nietzsche não aceita que as considerações de que a origem do Estado seja o contrato ou a convenção; essas teorias seriam apenas “fantásticas”; para ele, ao contrário, o Estado tem uma origem “terrível”, sendo criação da violência e da conquista e, como consequência, seus alicerces encontram-se na máxima que diz: “o poder dá o primeiro direito e não há direito que no fundo não seja arrogância, usurpação e violência. (…)” (NIETZSCHE, Friedrich. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 14, itálico no original).

[6] NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 65, itálico nosso.

[7] PASCAL, Blaise. Pensamentos. Artigo XXIV, seções XIV e XV, grifo nosso.

[8] JHERING, Rudolf von. A Luta pelo Direito. São Paulo: Forense, 2006, p. 01, grifo nosso.

[9] Žižek, Slavoj. Robespierre: Virtud y Terror. Madrid: Akal, 2010, p. 220, grifo nosso.

[10] Žižek, Slavoj. Órgãos sem corpos. Rio de Janeiro: Cia de Freud, 2008, p. 63.

[11] NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: Reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 12, itálico no original.

*Vinícius Madureira é é advogado, atua na Procuradoria Jurídica da Universidade Estadual do Ceará