Para Maria Rita Kehl, em vez de deprimir, golpe energiza indignação

A crise política não deprime, ao contrário, energiza a população a ir para as ruas, afirmou na sexta-feira (16) a psicanalista Maria Rita Kehl, ao analisar a conjuntura política do país. “Ainda é difícil saber, tem uma grande desilusão com um projeto de um lado e uma grande derrota do outro, mas eu não sei se necessariamente essa derrota é depressiva”, afirmou.

Maria Rita Kehl - Divulgação

“A passeata que disseram que tinha 40 pessoas, e tinha por volta de 100 mil (no dia 4 de setembro, na Avenida Paulista), foi uma coisa de uma alegria, eu fui com meus filhos, fui pensando que ia ter pouca gente, mas a coisa foi crescendo e tinha uma alegria nas pessoas, estava todo mundo gritando. De repente, era mais fácil sair na rua para brigar com Temer do que para apoiar o que restou do governo Dilma”, disse a psicanalista, ao fazer referência à fala do presidente Michel Temer, um dia antes, quando tentou desqualificar o número de pessoas insatisfeitas com o golpe parlamentar que o levou ao cargo.

Ao participar do ciclo de palestras “Mutações entre Dois Mundos”, no Sesc Vila Mariana, onde falou sobre o tema “O desejo (a depressão e o desejo saciado)”, Maria Rita conversou com a reportagem da RBA. Mesmo sem sentir-se muito à vontade para falar de política, não recuou do desafio. A psicanalista mostrou-se reticente em admitir que a divisão do país se dá em torno da disputa por narrativas – a que tenta legitimar o golpe e a que o contesta –, preferindo sustentar que tais produções, pelo menos do ponto de vista daqueles que defendem o impeachment de Dilma Rousseff, são na verdade para esconder o verdadeiro motivo da crise, que é a luta de classes.

Ao falar das eleições municipais, que ocorrem em duas semanas, ela criticou algumas das contradições que estão aflorando no processo eleitoral, como o fato de candidatos e eleitores criticarem a redução de velocidade nas ruas da cidade, ainda que a medida venha se mostrando benéfica. “O mais louco dos 50 por hora não é só que mata menos gente. etc., mas (o trânsito) flui mais, a velocidade média aumentou, e querem o direito de andar mais rápido para ficar engarrafado mais tempo. A gente vê que a ideologia é algo que está por baixo da epiderme”, destacou.

Na palestra, Maria Rita Kehl falou do processo de produção do desejo na subjetividade humana, como isso muitas vezes é trocado ou compensado por tendências consumistas, o que afasta ainda mais o indivíduo de sua realidade interior, e como para o tratamento da depressão pode ser importante ao paciente resgatar cadeias de imaginação e fantasia, que têm o saudável papel de criar objetivos imaginários para o desejo, tirando-o do processo depressivo.

Confira temas que ela abordou:

Depressão e política

“Ainda é difícil saber, tem uma grande desilusão com um projeto de um lado e uma grande derrota do outro, mas eu não sei se necessariamente essa derrota é depressiva. Talvez fosse mais depressivo não no sentido da depressão patológica, que a pessoa fica na cama, e toma remédios, mas existe uma forma de depressão que é o conformismo.

Mantivemos o diálogo com Lula e vários políticos durante toda a campanha de 2002. E logo que ele foi eleito, ele fez uma reunião conosco, um pouco para discutir o seu projeto e a primeira coisa que se falou foi “não abre para o PMDB do jeito que está abrindo”, e ele, pragmático, falou: “Sem o PMDB eu não governo”. Nessa coisa de deixa pra lá, “o importante é fazer o que eu estou fazendo”, o PMDB tomou conta do governo dele já. Mas ele, Lula, tem um jeito de negociar, um jogo de cintura que conseguia, mas a Dilma não tem, e por uma questão de personalidade, mais rígida, não sei, conheço pouco, mas gosto muito dela por conta da Comissão da Verdade, e ela pessoalmente é uma pessoa agradabilíssima por mais que tenha fama de durona, é muito doce. Mas o Lula abriu demais para o PMDB, e ele ainda sabia segurar as pontas, a Dilma não soube. E quem derrotou a Dilma? Foi o PMDB, que sempre quis estar no poder, sempre esteve cercando, cercando, conseguindo coisas pelas bordas e agora conseguiu, é o Partido Me Dá uma Boquinha.

Mas aí eu não sei se é depressão, porque a quantidade de gente que está indo para as ruas, eu acho que é o contrário, eu acho que ficou mais difícil apoiar a Dilma – eu fui pra rua apoiar a Dilma – porque ela teve de fazer tanta concessão e já nem era mais um governo do PT. Era mais difícil chamar gente combativa apoiar Dilma, do que está sendo para combater o Temer. A passeata que disseram que tinha 40, 50 pessoas, e tinha por volta de 100 mil, foi uma coisa de uma alegria, apesar de ser para brigar, eu fui com meus filhos, fui pensando que ia ter pouca gente, mas a coisa foi crescendo e tinha uma alegria nas pessoas, estava todo mundo gritando. De repente, era mais fácil sair na rua para brigar com Temer do que para apoiar o que restava do governo Dilma.

Neste momento, está todo mundo aturdido, mas pelo que eu senti nesse dia como se fosse lá tomar o pulso do doente e constatar que ele melhorou em vez de piorar – eu não chamaria isso de depressão nesse momento. Posso me enganar, pode ser que o Temer faça um jogo de poder tão opressivo que durante dez anos ninguém mais possa se manifestar, ai vamos pensar de novo, mas agora eu acho que as pessoas estão muito mais indignadas do que deprimidas.”

Eleições municipais

Certamente o contexto da crise política influi nas eleições municipais. Se o Fernando Haddad fosse oportunista poderia ter saído do PT, feito um jogo e ido para o PMDB, como fez a Marta. Ele mexeu com um vício sagrado do paulistano que é o carro. O mais engraçado é o seguinte: olha como, voltando para essa elite doida que a gente tem, ele não tirou o direito de ninguém andar de carro, ele só criou alternativas. E o pessoal está furioso com ele. Tem ciclofaixa, tem faixa de ônibus; eu não tenho carro já desde antes do Haddad, eu vendi meu carro, comecei a andar de ônibus e comecei a me perguntar, o que eu estava fazendo dentro daquela lata parada no congestionamento. Eu pego o metrô e pego ônibus, é muito melhor. Os ônibus são maravilhosos, é claro que tem horário, tem bairro que enche, mas com as faixas, que estão se ampliando você vai muito rápido. Aí sim você pode dizer, a pessoa está brava com o quê? Ela está brava porque está parada no congestionamento com sua lata, que custou milhões… E tem o cara no ônibus passando por ela. Ela não aguenta isso… Tem mais gente dentro do ônibus do que engarrafada, mas os formadores de opinião estão dentro dos carros.

Limite de 50 km/h

O mais louco dos 50 km/h não é só que mata menos gente, etc., mas [o trânsito] flui mais, a velocidade média aumentou, e querem o direito de andar mais rápido para ficar engarrafado mais tempo. A gente vê que a ideologia é algo que está por baixo da epiderme. A ideia do Marx sobre os interesses materiais é forte, eu acho que um texto que todo mundo tem de ler é sobre o fetiche da mercadoria, no primeiro capítulo do Capital.

Narrativas sobre a crise

As narrativas são para se encobrir a velha e boa luta de classes. Não vejo [a crise política] como uma disputa de narrativas, embora muitas pessoas jovens, pouco politizadas, possam embarcar em uma questão de narrativas. O problema é que o país é conservador, fundado, desde a colonização, na escravidão; o país do Ocidente que teve o maior período de escravidão, eu soube disso pelo Luiz Felipe de Alencastro. Só o Haiti demorou mais para libertar os escravos do que o Brasil.

A gente tem uma educação política baseada em primeiro lugar na expropriação da natureza, os portugueses vieram para cá para isso, e depois na escravidão. Nós temos menos de dois séculos sem escravidão. O PT quando surgiu era um partido operário mesmo, tinha uma plataforma e, principalmente no final da ditadura, teve um papel importantíssimo. Eu, por exemplo, fui a primeira vez, como jornalista, em um comício do Lula no 1º de maio, quando ele era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, e não era candidato a nada. Já havia uma potência na fala dele, e ai sim tinha uma narrativa, o Lula sabe muito bem fazer isso. Coisa que infelizmente a Dilma não sabe. Isso não é um defeito de caráter, mas uma questão de personalidade.

O Lula para qualquer encrenca se sai com uma linda narrativa. Na época em que o problema não era de encrenca, mas de realmente levantar os operários – e o Lula sempre dizia que não era de esquerda, sempre fazia questão de marcar o seu lugar como líder popular, representando os interesses de uma categoria, e não no sentido de uma perspectiva da luta de classes.

Legado da escravidão e pobreza hoje

A desigualdade no país é sistêmica, histórica, ela tem como base histórica os três séculos de escravidão. Os Estados Unidos também escravizaram de maneira muito pesada, não eram um país de santos, mas ali quando a escravidão acabou houve uma mínima reparação aos escravos, um pedaço de terra, alguma coisa para começar a vida.

Aqui não, aqui as enxurradas de trabalhadores que eram escravos foram jogadas na rua. Um fazendeiro que empregava, digamos assim, 3 mil escravos que ele só tinha que alimentar, e muito mal, passou a pagar 300, ou 500, explorar o máximo, e o resto rua. Não teve reparação.

Nós formamos uma pobreza desamparada. Não se trata da família que tem sua terrinha, que luta, ou do cara que tem um empreguinho e ganha mal; é uma pobreza de desamparo, um monte de gente que ficou a ver navios, ao deus-dará. E aqui vale uma nota de rodapé: o samba nasceu disso, das populações escravas tentando se estabelecer na Gamboa, no Rio, e recuperando suas tradições. Esse é um detalhe para destacar a ideia do José Miguel Wisnik, no livro dele (Veneno Remédio: O Futebol e o Brasil – Companhia das Letras, 2008); até isso que foi tão trágico teve para a cultura brasileira um saldo espetacular.

Elites e privilégios

Parece que a elite, e a classe média também, pois ela sempre se identifica com a elite – isso está no Marx – teve muito pouca responsabilidade social pela quantidade de privilégios que teve. Eu não estou dizendo que não trabalhou, que é uma elite só rentista, como aconteceu mais recentemente, mas é uma elite que tinha poucos deveres sociais. Pagava pouco imposto em relação a tudo o que ganhava.

As fazendas antigamente tinham as colônias onde os trabalhadores moravam. Quando começa a mecanização do campo, os fazendeiros dispensam, onde ele tinha 300 empregados ele fica com três, e os outros viram boia-fria, vão morar nas favelas, nas periferias das cidades. Em 2005, 2006 por aí, eu vi uma conferência do [João Pedro] Stédile, líder do MST, em que ele disse que numa cidade como Ribeirão Preto, com a cana-de-açúcar, havia mortes por exaustão [entre os cortadores de cana], o cara ganhava por tonelada e mortes por exaustão são até algo pior do que trabalho escravo.

Nessa época, a população carcerária de Ribeirão Preto já era maior do que a população rural. Tinha mais gente que foi expulsa do campo e que foi para as favelas do que morando no campo. Esse é o modelo de desenvolvimento do Brasil.

Os governos do PT vieram com um discurso que não era um discurso revolucionário. E diminuir a desigualdade custou alguma coisa para a elite? Não! No governo Lula, os milionários ficaram mais milionários. Então, é uma disputa aí sim de narrativas, mas também de perda de mínimos privilégios. Dou exemplo com a questão das cotas nas universidades.

“Videologias”

Na verdade, “videologias” não foi um conceito, foi só uma brincadeira que a gente fez porque a gente gostava muito do livro Mitologias, do Barthes [Roland Barthes – 1915-1980], então, a gente inventou essa palavra para a nova mitologia, via televisão. Não sei seu eu faria hoje algum adendo ao livro, mas acho que isso só se sofisticou. Eu diria que nada mudou qualitativamente, mas se sofisticou por um lado, e por outro talvez, ao contrário, na medida em que começou a haver uma insatisfação detectável na classe média, que é o principal público da televisão.

Não estou dizendo que a elite não vê televisão, mas a grande massa está nas classes B e C – pelo menos antigamente era assim, quando eu estudei a ascensão da Globo, e pode ser que não seja mais, que eu esteja falando bobagem, mas essa classe que tem sido representada na televisão. Minha tese de mestrado foi uma pesquisa sobre a Globo durante a ascensão do regime militar, nos anos 1970, na verdade, não ligando diretamente com a ditadura, mas ligando com o tipo de discurso que ela conseguiu disseminar na época do chamado milagre, Brasil Grande, etc. A Globo foi a primeira emissora que ocupou a rede Embratel.

E isso não foi ao acaso. Eu tive acesso a documentos da Escola Superior de Guerra, havia reuniões de executivos da Globo com gente de alta patente do governo militar, e ministro da Educação, da Cultura, etc., dizendo que havia polos de insatisfação no Brasil. E eles diziam que as pessoas não sabiam ainda como este país progrediu. “Temos de levar a modernidade e a notícia do milagre brasileiro nos rincões isolados.” Então, a integração do Brasil pela Globo foi feita como um projeto de política cultural e de política ideológica. A Globo foi a primeira a ocupar a rede Embratel nos anos 1970.

Mas o que acontece? O teatro de esquerda, que era muito bom nos anos 1960, estava sendo perseguido, censurado, eles trouxeram esses caras para a TV. E o discurso desses caras, como o Lauro César Muniz, era de quem tinha esperança e diziam assim: “Em vez de eu fazer um discurso de esquerda radical para 100 espectadores, a gente faz um discurso moderado para 30 mil, ou para 300 mil, e pode ser que seja melhor”. Mas a gente nunca vai saber se esse cálculo estava certo ou não. O Augusto Boal não fez isso, ele foi um que se exilou, o centro do Teatro do Oprimido continuou fazendo alguma coisa por aqui, ele voltou, e segurou o Teatro do Oprimido enquanto deu, até morrer praticamente.

Mas os que foram para a televisão – e quando eu escrevi sobre eles era uma perspectiva muito radical, no sentido de julgar demais, mas talvez eles tivessem uma sincera esperança de que isso [a conciliação de classes] fosse possível. E as novelas das oito, particularmente, sempre fizeram essa conciliação.