As instituições de controle e o combate à corrupção

O fim da CGU é uma inflexão clara no processo que estava em curso de formação de uma rede de instituições de controle. A sua mudança de nome e o rebaixamento institucional são, no mínimo, simbólicos e sintomáticos de que qualquer esforço de controle e responsabilização da corrupção será punido.

Por Ana Luiza Melo Aranha*, no Brasil Debate


Combate a corrupção - Foto: EBC

Demorei muito a me decidir por onde começar a escrever sobre a recente crise política no Brasil. Corrupção? Impeachment? Golpe? Tudo muito na moda, mas ainda sem tocar num ponto que pra mim é muito caro. Começo então pelo que mais me interessa, tema da minha tese de doutorado: as instituições de controle (ou de accountability, termo mais amplo e adequado para englobar as suas tarefas de controle e também de responsabilização).

Desde a nossa redemocratização, tem sido feito um esforço gigantesco de fortalecimento dessas instituições, passando pela criação da Controladoria Geral da União (CGU), ampliação das funções e poderes do Ministério Público, fortalecimento da Polícia Federal e Tribunal de Contas da União. Sem contar os avanços da própria Justiça, especialmente a de primeiro grau.

E eu posso afirmar, após cinco anos de pesquisa na área, que essas instituições começaram a formar o que chamo de “rede de instituições de accountability”. O principal problema desta rede tem sido o de coordenar os seus esforços. Me explico. A tese inova ao mostrar que a rede funciona muito bem em alguns pontos e entre algumas instituições. Era inspirador o trabalho em conjunto da Controladoria Geral da União (e a sua expertise administrativa), a Polícia Federal (e suas operações especiais) e o Ministério Público Federal (e a abertura de ações cíveis e criminais) – o exemplo mais famoso de cooperação entre elas é o da operação Sanguessuga.

O Tribunal de Contas da União, por sua vez, é uma instituição mais complexa. Há uma divisão interna sobre o seu papel no combate à corrupção, que perpassa a divisão interna entre o seu corpo técnico e seus ministros politicamente nomeados. Para alguns é papel central do TCU o monitoramento, e não o combate per si; para outros o Tribunal deveria ter os mesmos poderes que a PF, por exemplo. Na ponta do processo de controle e responsabilização, está a Justiça e a sua famosa lentidão em processar e julgar os casos.

A rede é muito mais complexa do que tem sido retratado na ciência política atual. E a sua complexidade esbarra justamente na autodefinição do seu papel no controle da corrupção. Todas querem para si os louros da luta contra o fenômeno, mas são muitas vezes incapazes de trocar informações entre si, compartilhar dados, fazer reuniões em conjunto para estabelecer prioridades.

Estes problemas existem. Mas de forma concomitante também existiu um esforço, ainda que tímido, de uni-las em torno de um projeto em comum de controle da corrupção. E por que uso o tempo verbal no passado? Porque a rede não existe mais. A inflexão fica clara com o fim da CGU. Fim lamentado por todos os cantos do mundo (ela era a nossa signatária de todos os acordos internacionais referente ao tema da corrupção).

A sua mudança de nome e o rebaixamento institucional são, no mínimo, simbólicos e sintomáticos de que qualquer esforço bem-sucedido de controle e responsabilização da corrupção será punido. Junto com isso, a maior operação de controle da corrupção no país, extremamente midiática e performática, ameaça levar o país ao fundo do fundo do poço.

Já afirmei por aqui que corrupção não é igual a propina – forma mais comum de se medi-la nos estudos e pesquisas acadêmicos. Ela tem um quê de opacidade. Prefiro defini-la, e tenho sido acusada de audaz e ousada, como uma ausência de capacidade de justificativa pública. Se um funcionário público ou governante opta por uma ação/decisão e não tem condições de vir a público defendê-la (porque essa ação visa a privilégios excludentes, democraticamente ilegítimos), essa ação pode ser classificada como corrupta. E as instituições de accountability entram no jogo justamente aí: são elas que conseguem dizer, dada a sua expertise no assunto, o que é/o que não é corrupção, quais justificativas públicas são/ não são aceitáveis. São elas que mobilizam a capacidade dos atores políticos de fornecer justificativas perante as suas ações.

São elas que conseguem ajudar a cidadania a fazer o julgamento sobre as ações corruptas. Mas a inflexão recente aponta para uma preocupação excessiva e danosa dessas instituições com a opinião pública. Há no nível federal um esforço por esvaziar essas instituições e sinalizar que existem certos limites intransponíveis no combate a corrupção no Brasil.

Existem atores, partidos, mídias, empresas, que são absolutamente intocáveis. Existem limites, agora claramente intransponíveis, sobre até que ponto um presidente pode “permitir” investigações. E não se iludam. Já ouvi o argumento de que “não se pode investigar tudo” de todos os pontos do espectro político. A ideia é muito clara: se abrimos a caixa de pandora da corrupção, não vai sobrar pedra sobre pedra. E parece que não está sobrando. Mas eu tenho muito medo deste tipo de argumento. Um medo democrático: se não estamos dispostos, enquanto sociedade política, a descobrir os malfeitos e exclusões que nos dominam, enfrentá-los de frente e achar uma saída juntos, essa miopia do controle nos custará caro demais.

Enfrentar a corrupção seria como ir ao terapeuta enfrentar nossas mazelas. É duro, é difícil, a gente chora e esperneia, mas depois conseguimos olhar o problema nos olhos, dar a ele uma solução – ainda que sempre provisória – e seguir em frente. Não ir ao terapeuta, ao contrário, torna tudo muito mais fácil; na superfície, tudo corre bem. Mas lá embaixo, no subsolo dos encontros e decisões, continuamos aceitando enquanto sociedade que alguns atos corruptos são necessários para manter a boa ordem política.

O problema que toca de forma grave é que a corrupção é o oposto exato de soberania popular. Ela é uma ação excludente política e socialmente. Deixa de fora das decisões políticas aqueles que legitimamente deveriam fazer parte delas. Distribuem-se desigual e ilegitimamente os recursos públicos. Como podemos ser coniventes com isso? Simples, se nos pretendemos democráticos, não podemos.

Não podemos deixar essa rede de controle e responsabilização se desfazer. Pelo contrário, fortalecer relações sadias entre as instituições, a troca, a reciprocidade, ao invés da competição desenfreada pela atenção da opinião pública. Do que se fazem boas instituições de controle? Da capacidade institucional de prevenir, controlar, investigar e, se for o caso, punir os atos corruptos. Criar um sistema no qual os desvios ocorrem (eles sempre irão ocorrer, não sejamos ingênuos), mas são detectados e tratados devidamente.

Fechar os olhos e pregar qualquer sistema no qual o jogo político é jogado a partir de regras velhas, patrimonialistas e excludentes é ser conivente com o desvio de regras e recursos públicos. Saber que a corrupção é sempre uma potência e que cabe a nós darmos a devida solução todas as vezes em que ela aparece é o que nos define enquanto sociedade democrática.

É extremamente fácil bradar contra a corrupção, toda vez que convier. Difícil é perceber que o seu próprio grupo político também se envolve em esquemas duvidosos e defender que, se assim for, os seus também merecem as devidas sanções (especialmente a devolução de recursos, tão baixa desde sempre). Se continuarmos tendo medo de enfrentá-la, ou apenas usá-la midiaticamente em momentos políticos que antecedem governos não-democráticos, o tema se banaliza e perde o que de único nos une enquanto sociedade política: a arte de definirmos aqueles que irão nos governar e a certeza de não sermos ilegitimamente excluídos das decisões que tocam nossas vidas profundamente.