Após manifestações, Estado sofisticou técnicas de repressão policial

Em audiência pública, especialistas em violência contra comunicadores e vítimas apontaram a fragilidade da liberdade de imprensa no país, especialmente a praticada pela polícia de Alckmin.

Por Gabriel Valery, da RBA

PM contra a imprensa - Foto: Paulo Pinto/ AGPT

“O Estado tem atuado com uma lógica de guerra contra manifestantes. E nesse raciocínio, o fato é que quando se inicia uma guerra, a primeira a morrer é a verdade. E os primeiros alvos são os veículos de comunicação. Estamos em um Estado onde a imprensa livre é vista como ameaça”, afirmou o professor Vitor Blotta, do Núcleo de Estudos de Violência da USP, durante audiência pública realizada hoje (28), em São Paulo, convocada pela Promotoria de Justiça de Direitos Humanos do Ministério Público do Estado de São Paulo.

Com o tema "Tutela do Direito à Informação: cerceamento da atividade dos profissionais de imprensa em manifestações de rua e/ou atos públicos em razão da violência praticada por agentes do Estado", o evento foi realizado com finalidade de coletar depoimentos de profissionais da imprensa para a produção de provas em um inquérito civil que apura violação de liberdade de imprensa. Os agentes citados como cerceadores da imprensa são as polícias do país, em especial a Polícia Militar do Estado de São Paulo, sob comando do governador Geraldo Alckmin (PSDB).

A audiência foi mediada pelos promotores de Justiça Eduardo Valério e Beatriz Fonseca, mesmos autores do inquérito (MP 43.0725.0000597/2016-3), e contou com relatos de vítimas, bem como de profissionais que atuam na defesa de direitos. “Infelizmente, essa iniciativa não encontra companhia dentro do Estado. Desde 2013, estamos acompanhando uma quase completa inércia do Estado, especialmente em São Paulo, no sentido de avançar na garantia de liberdade de imprensa”, afirmou Camila Marques, da Artigo 19, entidade internacional de defesa dos direitos humanos.

Para Camila, chama a atenção a violência do Estado contra manifestantes especialmente após junho de 2013, quando milhões foram às ruas do país após o Movimento Passe Livre convocar uma série de atos contra aumentos nas tarifas do transporte público. “A partir do momento em que as autoridades se surpreenderam com a magnitude dos protestos, era uma oportunidade para refletir as praticas abusivas do Estado e garantir a liberdade de expressão. O que aconteceu foi o contrário”, lamenta Camila.

“O Estado sofisticou e aprimorou as técnicas de repressão: aumentou o orçamento na compra de equipamentos de opressão e também investiu em táticas. A polícia usa táticas como o envelopamento, que é quando a PM acompanha o ato fechando ruas paralelas para evitar fuga, e também o 'Caldeirão de Hamburgo', que consiste em confinar os manifestantes em pequenos espaços. Essa tática é condenada até pelas Nações Unidas”, completou a ativista.

Por que atacar a imprensa?

Camila argumenta que os ataques da PM à imprensa, “seja com violência ou apagando fotos, destruindo equipamentos e apagando conteúdos dos celulares", revelam uma finalidade certeira: "impedir a cobertura”. Para os presentes, as ações contra jornalistas, "midiativistas" e" midialivristas" são constantes justamente para “que a população não conheça o modus operandi da ação policial”.

O professor Blotta endossa: “Talvez a liberdade de imprensa seja uma das mais importantes em uma democracia. Quando ela é impedida, isso pode barrar outros. Muitas vezes os jornalistas não conseguem apresentar provas concretas para evidenciar o desrespeito aos direitos humanos praticados pela polícia porque os instrumentos utilizados para a coleta de provas são destruídos. Também sabemos que o único meio de divulgar algo para constranger a PM no sentido de respeitar direitos é através do audiovisual”, afirma.

Para a coordenadora de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Olaya Hanashiro, este processo de cerceamento da atividade jornalística pela PM é fruto de uma instituição ultrapassada. “As instituições policiais, desde a ditadura, não passaram por nenhum tipo de reforma estrutural. Essa é uma das maiores dificuldades que as tornam pouco transparentes. Elas devem saber que precisam prestar contas e essa é uma grande resistência.”

Violência seletiva

Outro ponto destacado pelos presentes foi a questão da seletividade da violência em ações da polícia comandada por Alckmin, como explica Olaya. “Quando falamos especialmente de São Paulo, vemos uma ação contraditória da PM. Algumas vezes, ela atua de maneira muito zelosa para garantir as manifestações. Em outras vezes, ela atua com excessivo rigor e com uso da força totalmente desproporcional. Isso abre margem para o questionamento que muito nos preocupa: a partidarização da polícia”.

Ações violentas da PM foram constantes em manifestações contrárias ao governo Alckmin, mais recentemente, contrárias ao presidente Michel Temer e contra o impeachment de Dilma Rousseff. Segundo os especialistas, isso desperta receio e deve ser combatido. “Qual a orientação que essas polícias recebem? Quais os critérios de atuação da PM? São ideológicos e partidários? Isso é extremamente perigoso”, completa Olaya.

Apesar da violência seletiva, quando se trata de ações de cerceamento da liberdade de imprensa, a PM não vê ideologia. Todos são alvos. Para exemplificar, a repórter Cíntia Maria Gomes, da CBN, rádio parte do grupo Globo, já sofreu com violência policial. A manifestação era do Movimento Passe Livre, em janeiro deste ano, contra aumento de passagem de transporte público em São Paulo. “O protesto foi grande e desde o começo a tensão também. Os policiais hostilizavam os presentes, inclusive acelerando carros e motos na intenção de atropelar os manifestantes”, disse.

“Após o encerramento do protesto, estava do lado de fora da estação Consolação do metro, na Avenida Paulista. A PM começou a lançar bombas e eu corri para a rua Haddock Lobo. Lá, fui atingida por um objeto que me causou dor e queimação. Fui atingida enquanto corria, pelas costas e não em uma situação de enfrentamento. Chegando no pronto-socorro, o médico constatou o ferimento devido à bala de borracha. Fui agredida não apenas em minha integridade física, mas em meu direito de exercer minha profissão. Na ocasião, a PM também apreendeu celulares de colegas da rádio”, afirmou.

No mesmo ato, o jornalista da TVT Jô Miyagui conseguiu flagrar um momento de violência gratuita da PM contra repórteres. “Após a manifestação, estávamos gravando em um local sem nenhum manifestante. A sorte é que gravamos. Um PM retirou o pino da bomba e lançou em nossa direção. É uma prova de que não existe motivo para a PM atacar a imprensa”, disse.

De acordo com a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), de 2002 até 2013, foram registrados 219 casos de agressões e impedimentos de jornalistas na execução do trabalho. De 2013 para cá, foram registrados 300 casos de violação, sendo que 2014 delas foram praticadas pelas polícias militares. “Existe uma radicalização da punição à liberdade de pensamento e de informação no país”, disse Blotta.