Emir Sader: O fator determinante da derrota da democracia

Muitos fatores concorreram para que o golpe triunfasse sobre a democracia, desde alguns que se arrastam desde 2003, até outros surgidos no segundo mandato de Dilma Rousseff. Mas o fator determinante do triunfo do golpe e da derrota da democracia terminou sendo a incapacidade do movimento popular no seu conjunto de impedir que a direita elegesse um Congresso bem mais conservador que os anteriores.

Por Emir Sader*, no Brasil 247

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Foi valendo-se da ampla maioria de que dispõe na Câmara e no Senado que a direita finalmente derrubou Dilma, sem nenhum argumento que o justificasse. É verdade que contou e segue contando com o silêncio cúmplice do STF, mas que não teria efeito, não fossem as votações maciçamente conservadoras que têm existido no Congresso.

Baseado nessa maioria que se estão revisando direitos constitucionais fundamentais para a grande maioria da população, que se está abrindo o pré-sal à exploração do capital estrangeiro, que se está atingindo direitos dos trabalhadores, dos jovens, das mulheres, dos negros, da grande maioria da população.

Pela primeira vez, todo o grande empresariado tinha se alinhado na oposição ao governo do PT e colocou todos os recursos que pôde mobilizar com o financiamento privado de campanhas na caixa de Eduardo Cunha, para eleger o Congresso mais reacionário da democracia brasileira. E a derrota que acabou sendo decisiva para a esquerda e todo o campo popular foi não ter sido capaz de evitar essa virada à direita. Não se conseguiu pelo menos manter um perfil como o dos Congressos anteriores e nem sequer canalizar para as eleições parlamentares a maioria eleitoral que Dilma conseguiu em 2014.

Isso aconteceu, em primeiro lugar, porque pela pouca importância, até aqui, do Congresso, os movimentos populares não politizavam as campanhas parlamentares. Houve sempre uma desproporção entre os votos para as eleições presidenciais e as parlamentares, espaço no qual se metia sempre o PMDB, sem capacidade de eleger ou sequer lançar candidato à presidência, mas apto, pelas políticas clientelísticas e o uso do dinheiro, de eleger bancadas com poder de veto a nível nacional.

Por outro lado, os movimentos populares não tiveram, até aqui, a tradição de eleger bancadas parlamentares para defender seus interesses no Congresso. Há um imenso lobby do agronegócio e muito poucos parlamentares para defender os trabalhadores rurais. Não há uma bancada significativa de defensores da educação pública, nem da saúde pública, tampouco dos movimentos de mulheres, de negros, de jovens, entre tantos outros setores do campo popular. O movimento sindical também não tem até aqui tradição de eleger bancadas de metalúrgicos, de bancários, de servidores públicos e assim por diante. É como se se deixasse nas mãos da elite tradicional a representação no Congresso, que seria sempre atacado pela mídia e também pelos movimentos populares como não representativo da sociedade.

É um erro, assim, de todo o campo popular, dos partidos, mas também dos governos, dos movimentos sociais, em todas as suas expressões. Com o fim do financiamento privado de campanhas, essa debilidade pode ser, pelo menos em parte, superada. O país precisa de um profundo processo de democratização do Estado, que requer uma nova Assembleia Constituinte, mas mesmo esta nunca será realidade se não democratizarmos o Congresso.

Um outro tema que a esquerda precisa enfrentar decididamente é o fim do mercado partidário, com a proliferação de partidos de aluguel. Não se pode pagar esse preço caríssimo para a democracia, com danos como o golpe recentemente dado, pela representação de partidos de esquerda que não conseguem representação suficiente para enfrentar uma cláusula de barreira. Esse partidos têm que elevar sua representação, mas podem, como aconteceu na Argentina, com resultados muito positivos, formar frentes de partidos de esquerda ou outras modalidades, para seguir mantendo sua representação, sem fazer a democracia pagar o preço caro da sua desqualificação pelo mercado de partidos à venda.