Publicado 26/10/2016 11:55
O dourado do Oscar reluzia sobre um dos amplificadores da banda de Bob Dylan na noite fria de São Paulo. O show havia acabado de começar e a "área VIP" seguia com muitos lugares vazios. Não ficava bem, para um mito. Nem para o homem a esconder sob o chapéu a voz mais rouca que nunca.
Mesmo diante da rara presença de Mr. Zimmerman no Brasil, as cadeiras vagas tinham lá sua razão de ser, parte pelos ingressos a novecentos dinheiros, parte pelo fato de ainda se tratar, para muitos, de um artista mais cultuado que efetivamente escutado. Em uma das primeiras fileiras, no entanto, estava um antigo compositor cearense, que o conhecia muito bem.
O encontro com Belchior, para quem tinha o penúltimo e mais barato ingresso para a apresentação, só foi possível porque, diante do embaraço de uma ilha de lugares vazios bem em frente a Dylan, a produção acabou liberando aos "mortais" de outros setores o acesso à área VIP. No escuro e no frisson do show, era correr para tomar assento e não perder o que acontecia no palco, no show da turnê "Modern Times".
Foi sentar-se, localizar-se e localizar, ali, bem ao lado, o escritor de canções que mais espelhou Dylan na música brasileira. Das letras longas e livres de rimas às reflexões, imagens, provocações, sentidos múltiplos na prosa poética e prenhe de referências. Da fuga da ditadura do "bom cantor", do "virtuoso instrumentista", para colocar em primeiro plano o criador, senhor da emoção, da ética e estética, da política e da paixão, da novidade e da redundância, da pretensão transformadora desbancando o cinismo produtivista. Tudo a palo seco no projeto da canção popular.
Em uma palavra, o cantautor. Aquele que, no desafio e na magia de compor, cantar e contar a própria obra, transmite sua mensagem como nenhum outro. Sob o olhar de Belchior, Dylan mostrava suas novas canções, revisitando pouquíssimos clássicos, para frustração de quem pagou caro. Era o avesso da crítica com que Belchior deparou tantas vezes, respondendo ad nauseam por que teimava em cantar "sempre as mesmas músicas" em seus shows e por que as regravava tantas vezes.
Ora, porque o público assim o queria. "Quando lanço disco novo, aí sim mostro canções novas no show", argumentava. Diante do burburinho desatento às novas criações de Dylan, como recriminar o velho – e eternamente jovem – Bel?
De volta às cadeiras acolchoadas, aperto de mãos, sorrisos e a pergunta: "Trouxe seus discos para entregar a ele?". Qual nada! Belchior levara como presente, isto sim, seus trabalhos de caligrafia. A peça encaixava com uma das tantas histórias mais tarde criadas em torno de seu "desaparecimento" – ainda tão chocante em tempos de "posto, logo existo", em que toda realidade é mediada e, se não teve "likes", não aconteceu.
Na missão impossível de se fazer recluso em uma esfera pública opressora e onipresente, estaria Belchior se dedicando a transcrever toda a "Divina Comédia" em caligrafia artística? Ou preparando um disco duplo de inéditas, coisas novas pra dizer? Quem sabe urdisse um "retorno triunfal" aos palcos para satisfazer todos os gostos, ganâncias, audiências, efemérides, ansiedades? Seria essa atitude de "sumir", de negar e provocar a sociedade do espetáculo, de se retirar do asfixiante "reality-show", em que todos cumprimos pena como personagens, a sua performance mais instigante, a grande nova obra que dele se reclamava?
Impossível saber. Mas bem se pode supor que, na vertigem do Brasil do golpe e do retrocesso, hoje "nosso herói" apenas conheça seu lugar. E esteja rindo de tudo isso, gargalhando mais e mais ao sabor de cada hipótese sobre seu paradeiro, cada tentativa de explicação, da mesa de bar à rede de TV. Entre uma obra e um destino humano, a opção por ser dono de seus dias e de seus setentanos. Porque, ele disse, viver é melhor que sonhar.
*Dalwton Moura é jornalista, crítico musical, compositor e pretende reencontrar Belchior em outro show do Dylan.