Especialistas consideram que a educação sofrerá grande retrocesso

Especialistas reunidos em São Paulo, nesta segunda (8), analisaram o impacto de medidas anunciadas por Michel Temer sobre o já difícil cenário da educação no país. Para eles, iniciativas como a nova regra fiscal e a reforma do ensino médio significarão retrocesso – menos verbas, mais privatização e focalização em determinado nível de ensino. Segundo Daniel Cara, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o desmonte do setor, que já existia, “entrou em uma espiral assustadora com Temer”.

debate educação

Daniel Cara, Otaviano Helene (professor da USP e ex-presidente do Inep) e Laura Giannecchini (do Fundo Regional da Sociedade Civil para a Educação e da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação) participaram do seminário O Desmonte da Educação. Com mediação do economista Eduardo Fagnani, o evento foi organizado por Le Monde Diplomatique Brasil e Plataforma Política Social.

Primeiro a falar, Otaviano Helene destacou a situação já crítica da educação brasileira. De acordo com ele, um grande problema do setor é a falta de financiamento adequado, algo que irá se agravar, caso a Proposta de Emenda Constitucional 55 (antiga PEC 241) seja implementada.

De acordo com Helene, o Brasil aplica em educação pública 5% do Produto Interno Bruto (PIB), apesar de já haver certo consenso na sociedade de que, com investimentos inferiores a 10% do PIB, não é possível resolver os problemas da área. “É impossível, na situação brasileira, conseguir montar um sistema educacional com um percentual do PIB tão baixo. É absurdamente insuficiente”, disse.

O professor rebateu os argumentos daqueles que comparam o Brasil a outros países, mas desconsideram as especificidades de cada local. “Algumas pessoas dizem: ah, a Alemanha aplica 5% do PIB e tem uma educação muito melhor que a brasileira. Mas esquecem que a Alemanha não tem o atraso educacional que o Brasil tem. E evidente que um país que tem um percentual de crianças e jovens muito menor precisa de menos dinheiro”.

Brasil não cumpre a Constituição

Segundo Otaviano Helene, as consequências do subfinanciamento são muitas – vão desde o baixo percentual de crianças atendidas, até a insuficiente qualidade do ensino. “Na educação fundamental, da ordem de 15% não concluem o ensino fundamental de 9 anos. É uma coisa absurda, a pessoa entra na escola e desaparece antes de completar os nove anos, que são obrigatórios desde a Constituição de 1988. Então o Brasil não cumpre a Constituição e isso não tem consequência nenhuma”, criticou.

Além da evasão, o atendimento é precário em muitas escolas públicas, apontou o professor. “A grande maioria frequenta instituições de qualidade duvidosa, com professor sobrecarregado, muitas aulas vagas, escolas sem condições de dar qualquer atendimento adicional às crianças que precisarem. E essa precariedade se reflete no nível de formação. Muitas saem do ensino fundamental analfabetas”.

Segundo ele, até o final do ensino médio, a evasão atinge algo entre 40% e 45% da população. “Quer dizer, quase metade da população brasileira entra na idade adulta e no mundo do trabalho sem completar o ensino médio. Se hoje isso já é complicado, imagine daqui há 50 anos, à medida que o mundo vai ficando cada vez mais complicado e o mundo do trabalho cada vez mais exigente”, provocou.

No ensino superior, a situação não é melhor, e a privatização já é uma realidade. Cerca de 70% dos estudantes frequentam instituições privadas e apenas 30%, públicas. “Isso é o inverso do que acontece nos Estados Unidos. Há uma visão um pouco fantasiosa sobre o que é os Estados Unidos, muitas vezes usado como paradigma do liberalismo. Mas eles não são liberais no ensino superior como somos aqui”, comparou.

Helene também refutou a ideia de que o Brasil é um país mais pobre e, portanto, o Estado não teria capacidade de arcar sozinho com os custos da Educação e, portanto, precisaria da iniciativa privada.

“Se isso fosse verdade, o estado brasileiro onde a privatização seria menor, seria no estado mais rico. Mas é o contrário. São Paulo é o mais privatizado do país: 90% do alunado está matriculado em instituições privadas. Nenhum país do mundo tem essa taxa de privatização”, sublinhou.

Está ruim; pode piorar

Um relatório do Fórum Econômico Mundial, citado por Helene, coloca o Brasil como penúltimo país da América do Sul em qualidade da educação. “Isso dá um panorama da educação brasileira. Ela vai muito mal”, disse o ex-presidente do Inep, mostrando que o que está ruim, ainda pode piorar, caso seja aprovada a PEC 55, que limita o crescimento dos gastos públicos primários à variação da inflação do anterior.

De acordo com Helene, nos próximos 20 anos – prazo de vigência do novo regime fiscal – a população, a renda per capta e o PIB vão crescer, mas os gastos federais com educação não poderão aumentar. Ele projeta que as despesas com educação cairão proporcionalmente ao PIB, para um valor abaixo de 1%.

O professor alertou ainda que não se trata de um problema só federal, pois a PEC deve afetar estados e municípios. Inclusive porque invalida os percentuais obrigatórios de investimentos mínimos em educação.

Ele previu ainda que a PEC criará uma distorção em relação à arrecadação. Com o aumento do PIB, a arrecadação deve crescer, mas não poderá ser direcionada para o gasto público, que estará limitado pela PEC.

“Se o gasto não vai acompanhar nem sequer o PIB, só poderá ser reajustado pela inflação, porque o governo vai arrecadar mais, se ele não vai poder gastar?”, questiona. “Talvez ele pegue uma parte do dinheiro e use para reduzir o tamanho da dívida, mas, por mais que digam isso, o tamanho da dívida nem é um problema”.

PEC proíbe o avanço social

Helene prevê então que o resultado dessa equação pode ser a ampliação de privilégios que beneficiam uma minoria da população. “Se dizem que não posso gastar mais que o crescimento da inflação, então também não vou arrecadar mais que o crescimento da inflação. Vou diminuir alíquotas de impostos, dar isenção, tolerar mais a sonegação…”.

O ex-presidente do Inep concluiu sua fala, defendendo que a PEC 55 significará um recuo no tempo até o início dos 1980, quando a evasão escolar era muito maior, a presença da universidade pública era muito menor, o salário mínimo era menor, não havia programas de renda mínima para idosos e pessoa com deficiência e sequer havia o Sistema Único de Saúde.

“A Ponte para o Futuro, do PMDB, é na verdade uma pinguela que vai nos levar ao passado. Será o único país que vai ter na Constituição uma norma dizendo que, ainda que a realidade e a economia permitam, você não pode superar problemas sociais. É uma PEC que proíbe o avanço social”.

Contra os acordos internacionais

A cientista social Laura Giannecchini destacou que o direito à educação está presente em todos os marcos internacionais de direitos humanos, que estabelecem também que se trata de um dever do Estado e que deve haver financiamento adequado para sua concretização.

De acordo com ela, na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, aprovada em 2015, todos os países do mundo se comprometeram com metas de educação, que previam assegurar educação inclusiva, equitativa, de qualidade e promover a aprendizagem ao longo de toda a vida para todos.

Nesse sentido, os países assumiram o compromisso de aumentar o financiamento do setor. “Os Estados latino-americanos se comprometeram com investir 6% do PIB. Nós não só não chegamos lá, como estamos correndo o risco de retroceder, mesmo tendo acabado de assinar um compromisso internacional.

Educação, um grande negócio

De acordo com Laura, as discussões internacionais evoluíram ao longo dos anos, de maneira a incorporar uma visão mais progressista da educação, como centro do desenvolvimento e promotora de transformação social, em oposição a um modelo reducionistas, voltado apenas à inclusão no mercado de trabalho.

Nesse contexto, a educação foi considerada como algo da responsabilidade do Estado, mas não necessariamente por meio de sistemas públicos, o que deu margem a tendências de privatização. Além disso, no momento de implementar essas agendas internacionais, as forças que defendem essa lógica do mercado vão ganhando cada vez mais espaço.

“Isso vem se refletindo, principalmente, na ideia de desvalorizar sistemas públicos e apresentar a privatização como solução. E a gente sabe que, em lugar de resolver, esses processos de privatização, na verdade, terminam por desmantelar de vez o sistema público, implementando uma lógica de mercado e de maximização dos interesses privados. De fato, a educação foi descoberta como um grande negócio”, apontou.

Contexto latino-americano

Segundo ela, as legislações da América Latina abrem espaço para que o Estado transfira algumas competências ao setor privado, algo que ocorre na Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, México, República Dominicana. Laura destacou que, no Chile, Guatemala, Honduras, Paraguai e Peru, o setor privado é, inclusive, convidado a desenhar a educação nacional.

“Em alguns lugares, a gestão é transferida ao setor privado, em outros modelos, o setor público compra a vaga no setor privado e paga para que aquela criança estude. Isso gera segregação de estudantes. Em algumas escolas, se concentram os estudantes de maior renda e, em outras, os de menor renda. Gera uma desigualdade dentro no interior do sistema público”, criticou.

Laura citou ainda que, além disso, o setor privado vem, cada vez, mais ofertando produtos à rede pública, como textos didáticos, novas tecnologias educativas, transporte, merenda, capacitações de professores, sistemas de gestões escolares por resultado, realização de provas standarizadas, sistemas de avaliação de alunos e professores.

“A gente observa que, com essa lógica de mercado e gestão por resultados, muitas vezes os professores que vão bem, as escolas que conseguem resultados mais favoráveis, recebem benefícios, salários maiores e mais atenção, quando se supõe que quem está com dificuldades é que precisaria de um olhar mais cuidadoso, de mais recursos. Isso continua intensificando desigualdades, gerando a manutenção do status quo”, condenou.

Mídia a serviço do mercado

Ela mencionou ainda que há crescimento de matrículas no setor privado e destacou o papel da mídia no sentido de descredenciar o sistema público, como forma de fortalecer o apoio à privatização do ensino.

“A gente vê um reforço, via veículos de comunicação de massa, da legitimação da privatização e parcerias público-privadas como solução para a educação e para debilitar o sistema público”. De acordo com ela, uma análise feita a partir da leitura de oito jornais latino-americanos mostrou que há uma ação sistemática para desvalorizar a educação pública e priorizar a privada. “Até porque muitos anunciantes são universidades e escolas privadas”, disse.

Resistência

Para Laura, apesar de o cenário ser complicado, é importante destacar que há resistência à mercantilização da educação. Ela lembra que, não só no Brasil, mas em toda a região, movimentos estudantis reagem à situação atual e cobram educação gratuita, pública, inclusiva e com financiamento adequado.

“Mas, se a partir da mobilização de estudantes a resistência cresce, por outro lado, a criminalização vem com toda a força”, lamentou. De acordo com ela, estudo recente mostra a ocorrência de violência, detenção e assassinatos em muitos países da região.

“Também é preocupante no Brasil um juiz determinar tortura sonora, cortar habitabilidade das ocupações, etc. É grave. Felizmente comitês de direitos humanos da ONU vêm se manifestando contra a privatização da educação, especificamente, e contra a criminalização dos movimentos estudantis”, encerrou.

A clareza dos estudantes

Último a falar, Daniel Cara chegou ao evento trazendo a notícia de que o ministro da Educação, Mendonça Filho, havia anunciado que processaria entidades que apoiaram ocupações de escolas.

De acordo com ele, diferente do que se tenta fazer crer, o movimento de ocupação é “autonomista”, não está sob o controle de nenhum grupo ou entidade e tem muita compreensão sobre o que está em jogo com a PEC 55 e a reforma do ensino médio.

"Os estudantes que fazem as ocupações têm clareza profunda dos danos da MP do ensino médio e, cada vez mais, da PEC 241, hoje PEC 55", disse.

Cara reconheceu avanços do governo Lula na área da educação e fez questão de frisar que considera o impeachment da presidenta Dilma Rousseff ilegítimo. Mas não deixou de fazer críticas ao governo dela, que promoveu um ajuste fiscal com corte nas verbas da educação.

O coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação destacou ainda que toda a comunidade internacional considera que aqui houve um golpe. “Isso é consenso, eu estive na Assembleia-Geral da ONU e todos com quem conversei estavam assustados com o que acontece no Brasil”, afirmou.

Focalização no ensino médio

Segundo ele, as medidas apresentadas por Temer após o impeachment são extremamente danosas à Educação e só aprofundam os problemas. Para ele, contudo, apesar dos prejuízos que acarretará, a PEC 55 deverá ser aprovada no Senado com o mesmo placar que afastou a presidenta.

Para Daniel Cara, a Medida Provisória que propõe a reforma do ensino médio é uma “retomada da visão do ex-ministro Paulo Renato Souza” em termos de oferta dos serviços em educação. Segundo ele, o ex-ministro marcou sua passagem pelo ministério pela focalização no ensino fundamental.

Para ele, a MP de Temer servirá para criar uma maneira de centralizar recursos no ensino médio, com prejuízos à educação infantil – um movimento contrário àquele do período Lula, que compreendia a educação como um processo que vai da creche à universidade.

Estímulo à privatização

Outro ponto da reforma considerado danoso por Daniel Cara é o fato de ela estimular parcerias público-privadas. “Considerando que os recursos serão pequenos, o que assusta na reforma é que ela permite que as matrículas do Fundeb sejam por meio de parcerias público-privadas. Hoje já há parcerias consagradas, com a participação de entidades empresarias que ofertam serviços à rede pública. Mas a oferta de matrículas, que era uma questão constrangida no Brasil, agora vai ser liberada”, apontou.

“A oferta de educação profissional e também de outros itinerários, poderá ser feita por instituições privadas. E, com toda a crise e restrição ao Fies e ao Prouni, as empresas de ensino superior vão começa a ofertar cursos. Esse é o primeiro ponto claro de privatização.

Para ele, não se sabe ainda o “tamanho dessa sanha”, mas há um grande incentivo, que é o sistema de créditos que o governo planeja implementar. “O aluno que cursar um itinerário pode ter uma compensação de créditos na universidade. Está se criando uma ponte para as empresas”, avaliou.

Constituição na berlinda

No fim de sua fala, Cara voltou a referir-se à posição do governo de tentar punir as entidades que deram apoio às ocupações de escolas. “Quando o ministro afirma que vai processar entidades que fizeram manifestações públicas em defesa das ocupações, demonstra que estamos em um momento no qual o debate sobre o direito à educação está sob ataque”.

Segundo ele, também é possível observar que as entidades privadas começam a atuar com muita força dentro do governo. “Significa que tudo que vinha sendo construído desde a Constituição de 1988 está sob ataque”, concluiu.

Assista à integra do debate: