Arruda Bastos: “Salvo pelo gongo, aposentei-me”

“Com as novas regras, fico a imaginar os trabalhadores da construção civil, dos estaleiros, do comércio, de serviços gerais e de muitas outras profissões extremamente desgastantes no aspecto físico e emocional. Como se aposentar integralmente só será possível com 49 longos anos de contribuição, a grande maioria vai morrer antes de conseguir essa façanha. Um crime contra quem trabalhou intensamente para o desenvolvimento do nosso país”.

Por *Arruda Bastos

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A expressão “salvo pelo gongo” tem duas origens conhecidas: a primeira nas lutas de boxe e a segunda na morte. No boxe, refere-se ao fato de um pugilista acuado poder ser salvo pelo fim do assalto ou round com o soar do gongo, é a versão mais difundida. Na morte, remete ao medo que as pessoas tinham de serem enterradas vivas, o que levou à instalação de cordas dentro dos caixões, por meio das quais o “ressuscitado” podia tocar um sino e avisar que não estava morto.

As duas origens da expressão podem ser usadas atualmente para alguém em condições de se aposentar. No meu caso em particular, posso dizer que fui salvo pelo gongo. Muitos sessentões da minha idade estão próximos ou completaram recentemente seu tempo de serviço que, atualmente, é de 35 anos. Com as novas regras propostas, os trabalhadores passarão a almejar a idade mínima de 65 anos e, desejando receber aposentadoria integral, contribuirão por longos 49 anos. Parece absurdo, mas é verdade: a maioria dos trabalhadores não vai se aposentar.

Como médico, sempre tive uma carga de trabalho muito intensa e estressante, com plantões, cirurgias, ambulatórios, enfermarias, consultórios, cargos de gestão e até Secretário da Saúde do Ceará. Todos os médicos quando alcançam a minha faixa etária e o meu tempo de atividade encontram-se um tanto estafados e almejam uma melhor qualidade de vida, com merecida aposentadoria, mesmo continuando a exercer a profissão em atividades de menor desgaste físico e emocional.

Com as novas regras, fico a imaginar os trabalhadores da construção civil, dos estaleiros, do comércio, de serviços gerais e de muitas outras profissões extremamente desgastantes no aspecto físico e emocional. Como se aposentar integralmente só será possível com 49 longos anos de contribuição, a grande maioria vai morrer antes de conseguir essa façanha. Um crime contra quem trabalhou intensamente para o desenvolvimento do nosso país.

O meu desejo era de dedicar esse artigo integralmente para agradecer a convivência harmoniosa que sempre tive no querido Hospital da Polícia Militar, hoje Hospital José Martiniano de Alencar. Falar do carinho que tenho dos seus atuais e antigos diretores, funcionários, colaboradores e colegas. Digo que vou sentir muita saudade da nossa convivência durante esses 40 anos, 35 anos como servidor público e 5 anos como estudante e prestador de serviço. São quatro décadas da minha vida dedicadas ao serviço público e a quem mais precisa: o nosso paciente.

Concursado da Secretaria de Segurança Pública em 1981, ainda no governo do saudoso Virgílio Távora, fui lotado como médico no Hospital da Polícia Militar, onde já trabalhava. Durante esses quarenta anos, desempenhei minhas atividades em diversos setores. Juntamente com o querido amigo Luiz Porto, fundamos o serviço de prevenção do câncer, unidade que chefiei e trabalhei por aproximadamente 30 anos. Nesse setor, tivemos a satisfação de implantar a cultura da prevenção e do diagnóstico precoce do câncer entre os militares, seus dependentes e a população, pois nosso serviço era aberto à comunidade.

Recordo também com carinho de todos os colegas que já não estão mais entre nós e que fizeram parte integrante da minha formação profissional; da mesma forma lembro os funcionários que se encontram na eternidade. Para não me emocionar, prefiro não citar os seus nomes. Eles têm lugar cativo nas minhas lembranças e no meu coração. Um tempo que não volta mais e que deixou um rastro indelével de saudade na minha memória.

Durante todo esse tempo de atuação profissional, vivenciei no HPM os altos e baixos da política e da gestão estadual. Em 2007, fui cedido à Secretária da Saúde do Estado para ocupar o cargo de Secretário Executivo e, depois, de Secretário da Saúde do Ceará. Nesse período, o Hospital da Polícia vivia um dos seus momentos de maior dificuldade, com a maioria dos seus serviços e setores paralisados. Discutia-se, inclusive, nas hostes do governo, a possibilidade de encerrar suas atividades.

Digo que um dos atos que julgo de maior relevância na minha gestão a frente da SESA foi o trabalho que realizei junto ao governador Cid Gomes para obter sua autorização para a incorporação do Hospital da Polícia à Secretaria da Saúde. Como Secretário, trabalhei arduamente para seu soerguimento, inicialmente ainda na Secretaria de Segurança Pública e posteriormente na Saúde, com orçamento condizente e investimentos para sua modernização.

Quis o destino que, logo agora, que o Hospital ganha novos ares, reformado, com novos setores, centro cirúrgico, ampliação de leitos, setor de diagnóstico por imagem dos mais modernos, eu tenha que me afastar. Mesmo assim, não usufruindo como médico dos novos serviços, sinto-me recompensado por ter contribuído para o brilhante futuro que o espera. Só estou me aposentando porque, como diz o ditado, o seguro morreu de velho.

Voltando à questão da aposentadoria, conclamo a todos para, de forma organizada, lutarem contra as propostas que tramitam na Câmara dos Deputados. Acredito que só assim se fará justiça com os nossos sofridos trabalhadores. É a única forma de ainda encontrarmos pessoas que, como faço agora, aposentem-se em boas condições de saúde para escrever suas lembranças, em forma para usufruírem da nova condição e continuarem suas vidas.

Para concluir, pretendo fazer da minha ausência só o tempo bastante para que sintam minha falta, mas não a prolongarei demais para que vocês me esqueçam. Vamos dizer adeus à tristeza, que fiquem apenas as boas lembranças, só reste o amor e o agradecimento no peito, pois, no final de tudo, o que vale a pena mesmo é ser feliz.

*Arruda Bastos é médico, professor universitário, escritor, radialista, ex-Secretário da Saúde do Ceará, coordenador do Movimento Médicos pela Democracia e agora um aposentado salvo pelo gongo.

*Arruda Bastos é médico, professor universitário, escritor, radialista, ex-Secretário da Saúde do Estado do Ceará e um dos Coordenadores do Movimento Médicos pela Democracia.

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