“Para entender a prisão tem que estudar a rua”, diz antropólogo

Há quase 25 anos investigando o sistema prisional brasileiro, o antropólogo Milton Júlio de Carvalho Filho, volta e meia pensa em sair, em ganhar a liberdade. Mas há algo ali naquele lugar que todos querem evitar que o mantém fisgado. Para ele, as prisões são sinônimo de emancipação. “Eles perdem e se recuperam o tempo todo, de maneira intensa.”

Por Tatiana Mendonça

Milton Júlio de Carvalho Filho, - Foto: Adilton Venegeroles/Ag. A TARDE

“Absorvi muito isso para a minha vida pessoal.” Não esquece de um rapaz, Cláudio, que faleceu preso, e que costumava dizer que era “infalível”, porque tiravam tudo dele e ele nunca ia à falência. “Achei maravilhoso e fiquei querendo ser uma pessoa infalível também.” Já do sistema prisional brasileiro não se pode dizer o mesmo. Cronicamente esgotado, ganha as páginas dos jornais nacionais e estrangeiros quando mostra sua face mais terrível diante do cotidiano já medieval: as chacinas de pessoas tuteladas pelo Estado. Só este ano, pelo menos 136 presos foram mortos. Professor da Universidade Federal da Bahia, Milton está há um ano pesquisando a ocorrência dessas grandes rebeliões e fez uma conta rápida para a Muito: dá uma média de uma por semestre, com cerca de 14 mortos em cada conflito. Para o pesquisador, a situação só irá melhorar quando passarmos a olhar de modo mais inteligente a relação entre as prisões e as ruas.

Como o senhor avalia a decisão do presidente Michel Temer de liberar a atuação das Forças Armadas em presídios, para conter a crise?

O massacre do Carandiru não foi causado por agentes penitenciários, mas por policiais militares que entraram no presídio e justificaram o uso da violência para conter violência. Essa justificativa se mantém atualmente. Isso é uma demonstração de que os governos têm sido incompetentes para gerir esse modelo prisional ultrapassado. A opção da militarização, de modo geral, informa para a sociedade que os mecanismos de intermediação entre as pessoas presas e o Estado não está funcionando. E essa intermediação deve ser o objetivo a ser perseguido. Para entender a prisão, é preciso entender como a criminalidade opera nas ruas. Nem o governo nem a Justiça estão atentos a isso. Quantas vezes nós falamos: ‘Ah, recebi a ligação de um preso, aplicando um golpe’… A relação entre o presídio e a rua se intensificou. Estar preso não significa estar apartado de qualquer relação com a criminalidade violenta, pelo contrário. Além disso, você tem problemas que são tradicionais nas prisões, como a superlotação, a alimentação sem qualidade, a falta de trabalho… 90% dos presos querem trabalhar, mas não tem oferta de trabalho. É absurdo. É um depósito, né, a prisão acabou com seu objetivo social. Quer dizer, ela não responde à criminalidade urbana, não responde ao seu objetivo social, está superlotada, não oferece condições de trabalho, não oferece educação… Esse sistema está esgotado. Se nós continuarmos mantendo esse modelo, inadequado ao perfil da criminalidade urbana atual, nós vamos precisar construir uma prisão por mês. Se você perguntar a 10 pessoas como se diminui a violência urbana, 8 vão dizer que é com aprisionamento. E o Judiciário responde a essa voz popular e aprisiona, aprisiona, aprisiona, ainda que saiba das condições precaríssimas desse aprisionamento. Estou fazendo uma pesquisa sobre as grandes rebeliões que aconteceram no Brasil entre 1992, que foi a do Carandiru, e 2017. A média é de uma por semestre. O fator motivador geralmente é uma briga entre facções. Essas rebeliões vitimizaram diretamente 350 pessoas. São cerca de 14 mortes por rebelião. É um índice elevado.

Em que medida essas chacinas podem se repetir aqui na Bahia?

O mais forte que as rebeliões dizem para a gente é a capacidade de organização dos presos em escala nacional. Isso acontece porque a própria política pública de segurança se nacionalizou. Quando essa política saiu transferindo presos de um lugar para o outro, ela transferiu um conhecimento. Pegou um cara do Comando Vermelho, no Rio de Janeiro, ou do PCC, em São Paulo, e levou esse cara lá para Rondônia, para Roraima, para a Bahia… E esses caras deram aula, fizeram seguidores. Essa política começou no governo de Fernando Henrique Cardoso e é um equívoco total. Então as rebeliões são fortemente replicáveis. Os presos estão associados em redes. A própria estrutura do crime violento se nacionalizou. Quando você vê assalto à banco no interior da Bahia, vá lá e olhe de onde eles são. Não são baianos. Vá na [Penitenciária] Lemos Brito e pergunte quantos são de Salvador – 30%, 40%, no máximo. Tem muita gente do interior do estado. Hoje há uma crise de ruralidade, do trabalho rural. O menino não quer pegar na enxada como o pai já pegou, e ele viu o fim que teve… O crime se interiorizou e se nacionalizou. Então como não esperar que as facções também tenham se nacionalizado? A imprensa também fez com que as facções crescessem muito, dando a alguns sujeitos o status de liderança nacional, como Marcola, Fernandinho Beira-Mar… E as facções, de novo, não são só prisionais. Elas estão associadas a mercados de drogas, com presença maciça no interior e nas grandes cidades. Você vai às escolas públicas de Salvador e tem lá os nomes das facções nas paredes. Olhe a força disso! E quando a política de segurança vai tratar das facções, trata como um assunto prisional, e não é só. É isso que a gente precisa alertar. Para entender a prisão, tem que estudar a rua. Então a possibilidade de essas rebeliões chegarem aqui é muito grande.

Mas o governo estadual segue dizendo que nas penitenciárias baianas não há facções, mas “pequenos grupos que se intitulam” como tal…

Que bom! (risos). Discurso é uma coisa linda. Veja, se supostamente não há facções nas prisões baianas, isso quer dizer que as prisões daqui não estão associadas ao sistema de criminalidade urbana vigente no Brasil hoje. Então, as pessoas estão presas por crimes passionais, e por estarem sofrendo, não têm nem condições de se associarem (risos).

A gente fala em rebeliões, mas na verdade há uma realidade contínua de mortes violentas em presídios. Aqui na Bahia, oficialmente foram 7 em 2016; no Brasil inteiro, foram 372 mortes de pessoas que estavam sob tutela direta do Estado. Por que é tão difícil evitar que essas mortes aconteçam?

Primeiro, tem a ver com o perfil de superfluidade do próprio preso. Quem é preso no Brasil é o sujeito que socialmente já era considerado supérfluo, exterminável. Bairros como Engenho Velho, Nordeste de Amaralina, Alto do Cabrito, também tem uma série de mortes que têm a ver com tráfico de drogas, furtos… Isso chega à prisão. São esses sujeitos, que não são mortos no seu próprio local de vida, que são mortos nas prisões. São brigas de facções, sim, mas ter facção em presídio é uma realidade. Em que lugar do mundo não há organizações em prisões? Nós olhamos para essas facções como se fossem aberrações, mas elas são naturais. Tá junto, vai criar mecanismos políticos e associativos. O Estado faz que não vê tudo isso. É é uma realidade que não muda… Por que a gente não consegue considerar o esgotamento desse modelo? Claro que tem uma resposta pra isso. A corrupção que está por trás desse sistema. Porque se fala: ‘Ah, o preso no Brasil é caríssimo’. Vá lá na prisão e vá olhar a condição de vida dele. [O custo hoje] Tá quase perto de R$ 2 mil, R$ 1500. Uma criança de classe média custa isso numa escola particular e tem acesso a alimentação de qualidade, à educação, à esporte. Então não é possível que um preso custe isso. É estranho. Mas o brasileiro, de um modo geral, não avalia muito política pública. E quem está preso no Brasil hoje é o jovem da periferia, de 18 a 25 anos, envolvido com o varejo da droga. E esse varejo cada dia que passa solicita meninos mais jovens. Aqui no Engenho Velho da Federação são meninos com 11, 12 anos. Nós estamos pesquisando alguns bairros de Salvador, como o Engenho Velho, a Fazenda Garcia, para entender a relação das prisões com as ruas, que é a relação possível para entender como funciona a questão prisional hoje. Nós aplicamos questionários em uma escola pública e quando perguntamos quem era uma liderança do bairro, sabe o que mais apareceu? O traficante. Esses meninos e meninas não conseguem estar à vontade no bairro onde moram, porque têm medo. A gente perguntou onde eles se divertiam e a resposta foi em casa, porque no paredão pode rolar tiro. Isso não é considerado nas políticas de segurança. Então, o Estado tutela mal. Nas prisões, não há organizações sociais que se dediquem a fiscalizar isso. Em um ou outro estado tem uma associação de mães e mulheres de presos, mas assim que seu ente sai da prisão, o que se quer é esquecer daquela realidade.

Nos últimos anos, as Parcerias Público Privadas (PPPs) foram vendidas como solução para o sistema prisional brasileiro. E a chacina no Amazonas, com 56 mortes, ocorreu justamente numa penitenciária gerida por uma empresa privada, a Umanizzare…

É terrível, não resolve o esgotamento do modelo prisional, só adia. Se você for à Valença, ou a Lauro de Freitas, que são prisões “terceirizadas” – porque o Estado não pode passar a tutela para uma empresa privada, então nem podemos admitir o termo privatização, ou terceirização, por isso que ele planta lá um diretor dele que não vai ter grande força de gestão – mas se você chega lá aí eles vão te mostrar kits de vestuário e dizer: ‘Ah, aqui tem um dentista, médico…’. Fiz uma pesquisa comparando os egressos do sistema público dos egressos do sistema “terceirizado” e eles passam pelas mesmas dificuldades, saem na mesma condição fragilizada. Não tiveram qualificação nenhuma, não foram sequer avaliados do ponto de vista psicossocial da maneira minimamente esperada, engrossam da mesma maneira as estatísticas de reincidência prisional. Então essa gestão “privada” passa uma eficiência que acaba nos convencendo, diante da total ineficiência do sistema público. Mas essa eficiência é artificial. E tem outra coisa, nessas licitações, as empresas ganham por cabeça, e por isso precisam manter o fluxo. Há um aspecto bom, porque superlotação significa prejuízo. Por outro lado, se tiverem lá 220 presos, e a licitação foi de 280 vagas, também há prejuízo. Então essa empresa vai precisar que o sistema de Justiça encaminhe condenados. E nós estamos falando de um sistema de Justiça míope, que leva um monte de meninos envolvidos com o varejo das drogas para a prisão em regime fechado, algo totalmente irracional… No Brasil, nós não trabalhamos a pena alternativa, primeiro porque a sociedade acha que a pena alternativa não é a punição devida. É interessante esse paradoxo… A sociedade brasileira elegeu um tipo de punição que acredita ser a vingança perfeita. E a vingança perfeita não é porque seja um regime de privação de liberdade. É pelo que esse regime representa, a precarização da vida. É uma vingança social absoluta. Se a gente perguntar para essas pessoas que conclamam por mais prisão quais são as instituições em que elas mais acreditam no Brasil, é possível que a prisão seja uma das últimas. Ela não crê na prisão como ressocializadora, nem nada disso.

Parece mais uma questão de ódio que de justiça.

É uma questão de ódio que tem a ver com a classe, com a questão racial, porque são os pobres e negros que chegam às prisões. Os governos não têm clareza ainda sobre o principal problema. As estatísticas penitenciárias falam de dentro da prisão, mas não há uma relação com o lugar de onde esses presos vêem. Aí você iria desvendar o novelo.

Um pesquisador da Inglaterra que estuda facções no sistema prisional ao redor do mundo diz que a solução para diminuir o poder desses grupos é investir em cadeias menores, para que o poder público possa mediar melhor os conflitos entre os presos. O senhor concorda com isso?

Sim. Nós passamos a utilizar muito as prisões americanas como modelo, com investimentos altíssimos em prisões consideradas de segurança máxima, enquanto nós devíamos pensar nas prisões de segurança mínima. Prisões menores, com no máximo 200 presos, classificados por tipologia criminal, que tenham um menor investimento, com custeio compartilhado pelo preso, onde a comunidade tenha total inserção ali… Isso é algo importantíssimo que nossas prisões não têm hoje. É uma possibilidade de renovação desse modelo caótico.

É curioso que há décadas se fale em superlotação nas prisões, mas quando se vê de perto os dados, cerca de 40% das pessoas que estão presas não foram julgadas ainda, e a estimativa é que dessas, 20% sejam inocentadas posteriormente na Justiça. É uma superlotação fabricada, em certo sentido. Onde é preciso mexer para termos um sistema no mínimo mais eficiente?

No sistema de Justiça. Nosso sistema de Justiça é complicadíssimo, especialmente quando se fala em questão penal. E quem controla o sistema de Justiça hoje no Brasil? Eles estão fazendo o que querem. Criaram mecanismos de auto-controle, como o Conselho Nacional de Justiça… Mas é um poder autônomo, independente e perigoso. A revisão teria que começar daí. O inquérito policial também é muito viciado, a política opera de uma forma truculenta, pouco técnica. É meio assim: “Olha, elegi você como culpado, e agora vou montar minha tese para culpabilizar você mesmo”. Se você for alguém que tenha condições de sair disso, você sai, se não… Então, teria que mexer desde o inquérito policial até o que é considerado crime passível de punição no regime fechado, passando por considerar mais as progressões de pena, fazer com que a Lei de Execução Penal seja cumprida. O discurso é geralmente o seguinte: “Ah, mas ele cumpre só um terço [da pena]”. Mas não é assim para o pobre que está preso. É assim para a classe média que tem advogado. Nós temos que pensar em esvaziar as prisões permitindo revisões das penas, o que nós não fazemos.

A Defensoria Pública poderia atuar nesse sentido.

Sim, mas não tem fôlego. É muito pequena para o Estado e é inexpressiva para o Brasil. A Defensoria Pública poderia ter um papel fundamental nesse cenário. Na Bahia, mesmo pequenininha, tem avançado bastante. Além de tudo isso, há uma formação punitiva dentro da faculdade de Direito. Os meninos e meninas saem ávidos por punir. E aí o alvo da punição de novo se repete. Mesmo quando o sujeito vem de uma classe muito próxima, agora com esse boom dos cursos de direito, ele acaba reproduzindo a mesma lógica punitiva. E não se pensa nas penas alternativas, em mecanismos dialógicos. Como é que as partes lidam com a administração das penas produzidas? Veja, uma coisa é o homicídio, que é uma perda irreparável, mas há possibilidades de reparar o furto, o roubo simples, por exemplo. Mas ao invés de abrirmos para diálogos, nós, no Brasil, abrimos para a tecnologia. Você não fala em diálogo, mas fala em colocar uma tornozeleira eletrônica. Investe em tecnologia e não investe no que é mais simples, em instâncias mediadoras de conflito para que não se chegue a esse aprisionamento em regime fechado, tão longo.

Há a impressão de que os presídios federais dão melhor conta da sua função do que os estaduais. Isso se efetiva na prática?

Eles dão certo de certa maneira porque estão mais focados. Se eu penso em política prisional, deveria pensar em uma política de prevenção primária, uma política de prevenção secundária e uma política de prevenção terceária. O que seria a primária? Todos aqueles sujeitos que podem cumprir pena alternativa, prestação de serviço. Aí vou pensar na secundária, aquilo que afligiu grupos, o sujeito que criou danos coletivos. E a política terceária seria aquela para qual nasceu o presídio federal, para os sujeitos envolvidos no crime organizado, que não têm condições de ficar no seu estado de origem, porque poderiam levar à obstrução de investigação. Então, lá nos presídios federais não têm a mistura do ladrão de galinha com o cara que dá aula para ele de como roubar um banco. Lá os caras nem sequer falam entre si, porque guardam um monte de coisa e sabem que o outro é de outro lugar. Estão competindo por grandes montas do crime. Fui em [Centro de Readaptação Penitenciária] Presidente Bernardes, onde estava Marcola. A prisão pra mim sempre foi algo tão auditivo, e lá era um silêncio… Perguntei para um preso se era proibido conversar. E ele respondeu: “Conversar para quê?” (risos). Nas prisões estaduais, está todo mundo junto ali. Já numa prisão de segurança mínima, você teria maior controle sobre os sujeitos.

A maioria dos presos no Brasil foi encarcerada por tráfico de drogas (27%). Uma alteração na política de drogas teria impacto direto no sistema prisional. O senhor vê perspectivas reais de mudanças nessa legislação?

Se a gente tivesse uma liberação controlada, nós teríamos grande redução no contingente de presos. Sou, pessoalmente, um abolicionista e antiproibicionista. A discussão em torno da não-proibição tende a crescer muito, e já há também um movimento da economia pensando que seria um bom negócio. É um caminho. A questão da proibição é algo arbitrário do ponto de vista econômico e social. Há um forte comércio de drogas dentro dos bairros periféricos. Com a não proibição, grande parte disso seria igualmente resolvido. O mercado de drogas dentro das prisões também é bastante intenso. É um excelente mercado.

Boa parte da população concorda com o que disse o ex-secretário nacional de Juventude, Bruno Júlio, que afirmou que “tinha que fazer uma chacina por semana” nos presídios. Como o senhor costuma responder a isso?

De diversas maneiras. A primeira é que nos países em que o aprisionamento foi intensivo, não houve redução da criminalidade. A segunda é por que nós, que somos um país pobre, temos que assumir um custo tão elevado por um sistema prisional que não dá nenhuma resposta? E em terceiro lugar, quando você dá uma chance para esses sujeitos ressignificarem sua trajetória de vida, eles se emancipam. Tenho uma estimativa pessoal de que no máximo 10% da massa carcerária é formada por pessoas que têm uma aderência desejante pelo crime. Nós todos temos a violência como uma das nossas características, mas também temos a solidariedade, a amizade, amor… Essa resposta do maior aprisionamento e da eliminação é a resposta da ausência de pensamento. A gente precisa mexer com a prisão de maneira mais plastica, até que esse modelo seja esgotado.