TJ censura a juíza que soltou presos por já terem cumprido penas
A desembargadora Kenarik Boujikian recebeu pena de censura do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo por ter expedido alvarás de soltura para 10 réus que estavam presos preventivamente há mais tempo do que a pena estabelecida na sentença, seguindo os princípios jurídicos. Por 15 votos a 9, os desembargadores avaliaram que em pelo menos três ocasiões a juíza não adotou “cautelas mínimas” antes de expedir os alvarás. Kenarik fica impedida de ser promovida por merecimento, por um ano.
Publicado 12/02/2017 10:22
Desde que sentença foi divulgada, a juíza recebeu centenas de mensagens de apoio em seu perfil pessoal no Facebook. Os apoiadores criaram a hashtag #somostodoskenarik. Conhecida por sua atuação na defesa dos direitos humanos e por ser uma das fundadoras da Associação Juízes para a Democracia (AJD), a magistrada foi acusada de "usurpar a competência do juízo" com sua decisão. Os alvarás de soltura foram concedidos por Kenarik na condição de relatora dos processos, sem que a 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça analisasse os casos.
Em reportagem publicada no site Justificando, a advogada criminalista integrante do Instituto dos Advogados Brasileiros, Maíra Fernandes, demonstrou perplexidade. “Quando uma juíza é condenada por seus pares por fazer justiça, realmente, perdemos as esperanças em dias melhores…”, comentou a advogada. Para ela, a decisão do TJ-SP “espelha a lógica de um Poder Judiciário cada vez mais conservador, perseguidor e injusto”.
A professora Soraia da Rosa Mendes, também criticou a decisão. “Agora quem emite a censura somos nós, juízas, promotoras, defensoras públicas, professoras, cidadãs, mulheres. Porque somos solidárias. Porque mexeu com a Kenarik mexeu com todas!“
O Procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo aposentado e Advogado Roberto Tardelli afirmou que o crime de Kenarik foi transcender a mediocridade de seus algozes – “Ela se eternizará, ao contrário de seus algozes, que somente sobreviverão nos retratos descoloridos dos mortos nos corredores do TJ”.
O comentário do professor de Direito Processual Penal na UFRJ, Geraldo Prado, gerou grande repercussão nas redes sociais. Prado disse que considera a juíza merecedora de “admiração e profundo respeito”.
“Todos querem ser julgados por juízes imparciais, que restabeleçam prontamente a liberdade violada. Não são muitos, todavia, que aceitam uma juíza que atue dessa maneira na tutela dos direitos fundamentais do Outro. Feliz da sociedade que tem a Kenarik Boujikian como paradigma de magistrada. A punição por fazer justiça apenas reafirma a condição brutalmente desigual de nossa sociedade, incentivando os grandes juízes e juízas brasileiros a romperem com as práticas que, fundadas na força, carecem por completo de legitimidade. Kenarik não conta apenas com minha solidariedade. Ela é merecedora de admiração e profundo respeito, porque ao ser magistrada em circunstâncias adversas segue inspirando gerações de colegas”, disse ele.
Para o juiz de Direito do Tribunal de Justiça de São Paulo, Marcelo Semer, “alguém que tem passado a carreira para nós mostrar a importância de uma judicatura independente e garantidora de direitos, como é o papel que a Constituição reservou para nós“. Semer ainda disse que sente orgulho de estar ao lado da juíza em todos os momentos, “em especial quando age em nome da liberdade e até mesmo quando é punida por isto. Toda força à Kenarik. E à luta dos magistrados por sua independência e pelos direitos dos que mais necessitam dos juízes“, completou.
Kenarik foi processada em agosto de 2015 por um de seus colegas, Amaro José Thomé Filho, revisor dos processos. Segundo ele, os recursos não apresentavam informações suficientes para caracterizar prisões ilegais, o que obrigaria Kenarik a ouvir os demais integrantes do colegiado antes de ter mandado soltar os acusados.
O processo administrativo apontou 11 irregularidades no caso. O relator, Beretta da Silveira, viu problemas em cinco deles: o fato de alguns dos presos já terem conseguido execução penal ou estarem foragidos, e três casos em que ainda havia recursos pendentes do Ministério Público, o que exigiria análise dos demais membros da câmara. Apesar disso, Silveira reconheceu que o princípio da colegialidade não é absoluto.
O julgamento começou em novembro de 2016, mas foi suspenso por pedido de vista do desembargador Antonio Carlos Malheiros, que votou contra a pena de censura para a magistrada. Malheiros defendeu que não havia motivos suficientes para responsabilizar a juíza, com base na independência dos magistrados e na ausência de dolo ou culpa. O desembargador Sérgio Rui seguiu entendimento semelhante.
O advogado de Kenarik, Igor Tamasauskas, avalia recorrer ao Conselho Nacional de Justiça. Em sustentação oral no Órgão Especial, o advogado defendeu que não houve má-fé, mas apenas motivação com base no “mais puro exercício da função jurisdicional”.
A trajetória de Kenarik é marcada pela defesa dos direitos humanos. Em novembro de 2013, por exemplo, quando o juiz que coordenava as detenções dos réus do chamado mensalão foi afastado da Vara de Execuções Penais do Distrito Federal após desentendimento com o então presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, a magistrada assinou uma nota na qual criticava o “coronelismo judiciário”, caso se comprovasse que Barbosa tivesse forçado a saída do juiz. Na época, o Tribunal negou qualquer problema entre os dois.
“Tudo indica que as decisões da sra. Kenarik, questionadas na Corregedoria, embora legais e justas, confrontam-se com a mentalidade punitivista e encarceradora de outros membros do Tribunal de Justiça de São Paulo – infelizmente, muito presente em todo o nosso sistema de justiça criminal”, afirmou a Pastoral Carcerária em nota, pouco antes da primeira sessão para julgar Kenarik, em janeiro de 2016. “Observa-se que alguns operadores do Direito, em total desacordo com os direitos e garantias fundamentais, promovem obstinadamente a pena de prisão como panaceia dos problemas sociais, dentre eles a violência urbana. Fazem da prisão regra, quando ela deveria ser exceção (ultima ratio), como prevê o nosso ordenamento jurídico.”
O Brasil apresenta a maior taxa de crescimento da população prisional, atualmente a quarta maior do mundo, com 607.731 pessoas presas em 2014, de acordo com dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça (MJ). O total só é inferior à quantidade de presos nos Estados Unidos, na China e na Rússia.
Levando em conta dos dados do Centro Internacional de Estudos Prisionais (ICPS, na sigla em inglês), do King’s College, de Londres, a situação seria ainda mais alarmante: com 715,6 mil pessoas presas, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas de Estados Unidos (com 2,2 milhões) e China (1,7 milhão).