Paulo Casaca: O Donald Trump alemão

Posso tê-lo pensado e dito aos amigos, mas na verdade, foi Wolfgang Schäuble – o todo-poderoso Ministro das Finanças alemão – a ser dado na imprensa internacional como fonte primeira: "Martin Schulz é o Donald Trump alemão".

Por Paulo Casaca*, no jornal Tornado

Martin Schulz

E se porventura o eterno número 2 da CDU alemã o disse com intuitos depreciativos – e tenho para mim que ele é demasiado inteligente para o ter feito – não vai tardar a dar-se conta do erro cometido.

A biografia pré-eleitoral de Schulz – citada em todo o lado até pelo, nesta matéria, insuspeito Economist – é a versão alemã do roteiro eleitoral americano: futebolista cheio de ambições, um acidente com o joelho coloca-o fora de jogo para sempre, e ele desesperado, cai na depressão, no desemprego e no alcoolismo.

Mas consegue levantar-se, e com a ajuda de mão amiga abre uma livraria na pequena cidade onde nasceu, de onde se tornou seu presidente da Câmara e daí passou ao Parlamento Europeu onde chegou a seu Presidente por cinco anos.

Conheci-o bem nos dez anos que com ele trabalhei no Parlamento Europeu e comparo-o frequentemente a um carro de combate alemão que quase nada faz parar e deixo aos leitores do "Tornado" um dos episódios por ele protagonizados e que mais me marcou.

A regra eleitoral do Parlamento Europeu é a do método de Hondt que funciona com um sistema de pontos, com a distribuição de todos os cargos eletivos (mesmo o de Presidente, a moda de ter eleições abertas foi inaugurada por Mário Soares, na altura sem bons resultados, como sabemos).

A meio do mandato, o Parlamento Europeu resolveu criar uma nova delegação, a delegação para as relações com o Iraque. O sistema de pontos dava o lugar ao Partido Socialista, e dentro deste à delegação italiana, e estes escolheram uma senhora, muito popular em Itália por ter sido âncora de televisão.

Martin Schulz comunicou assim, dentro das regras formais estabelecidas, o nome da próxima líder da delegação. Acontece que o poderoso lobby do regime iraniano no PE não estava de acordo com a decisão, não por ter alguma coisa contra a socialista italiana, mas por querer à viva força ver a baronesa Nicholson que terminava então a sua longa presença no PE – e que dirigia o lobby iraniano no PE, mas que era liberal britânica e que portanto nunca poderia ascender ao cargo – como sua presidente.

A então número dois do lobby iraniano – a Doutora Ana Gomes, que substituiu no cargo de número um a baronesa Nicholson depois da sua reforma – foi encarregada da operação. Como em muitos outros casos, saiu-se bem, mandando às malvas a diretiva do PS e de Martin Schulz e cumprindo as de Teerã, substituindo assim no cargo a italiana pela baronesa Nicholson.

Martin Schulz espumou de raiva e exigiu imediatamente a expulsão da Doutora Ana Gomes do Partido Socialista. E entra aqui em cena Edite Estrela, na altura chefe da delegação dos socialistas portugueses, e torna-se forçoso um parêntesis para que a história seja compreensível.

Conheci Edite Estrela em 1992, em plena campanha para as eleições regionais açorianas. O PS-Açores, mercê das suas crônicas lutas intestinas, tinha acabado por escolher Mário Machado, um independente, como candidato a Presidente do Governo Regional, independente que tinha sido eleito no quadro de uma aliança PS com o PDA (Partido Democrático do Atlântico) presidente da edilidade de Ponta Delgada.

Ora ninguém no PS-Açores se mexia para fazer campanha por um independente, nem sequer para fazer os tempos de antena. E na verdade não teríamos tido tempo de antena nas eleições se Edite Estrela – dirigente socialista do PS nacional que em nada era responsável pelo drama – não se agarrasse dia e noite ao trabalho, com uma dedicação a que assisti pessoalmente e me marcou para sempre.

A Edite Estrela é isto, uma mulher com uma generosidade sem limites e que é absolutamente dedicada ao PS como nunca vi ninguém ser. Enquanto para a generalidade dos dirigentes socialistas o PS é uma escada que utilizam para se favorecer, a Edite Estrela é capaz de se sacrificar em tudo a bem do PS.

A expulsão da Doutora Ana Gomes do PS Europeu seria um drama para o PS português. Em primeiro lugar, porque seria uma desautorização do PS nacional perante a Europa e em segundo lugar porque a imprensa portuguesa não perdoaria esta falta de atenção do PS por Teerã.

A Edite Estrela tinha a sua missão de chefe da delegação portuguesa permanentemente sabotada pela Doutora Ana Gomes e seria a última das pessoas a ter motivos pessoais para a defender, mas empenhou-se no combate e – mobilizando para isso todo o PS nacional – conseguiu evitar a expulsão da Doutora Ana Gomes.

Foi das raras vezes em que vi o carro de combate alemão ser travado, e por uma razão de força maior, não lhe era possível abrir uma crise num PS como o português que estava na altura no Governo.

Por parte dos italianos, a reparação acabou por ser feita à minha custa, tendo eu cedido o lugar que ocupava de Presidente da delegação para as relações com a assembleia parlamentar da Otan a um italiano, coisa que fiz sem qualquer hesitação a bem do PS e com total desprendimento do cargo.

Confesso que nunca tive pelo PS a mesma dedicação demonstrada por Edite Estrela, mas aproximei-me mais disso do que quase todos os dirigentes socialistas que conheci (António Guterres, é aqui uma exceção de menção obrigatória). A primeira coisa que fiz quando, em 2014, em consciência, entendi que não podia mais engolir a minha opinião a favor dos interesses do PS, e o Antônio José Seguro (transformado em verdadeira marionete da Doutora Ana Gomes) decidiu plantá-la no Parlamento Europeu numa lista favorável ao bloco central, foi enviar-lhe a carta de demissão de militante socialista antes de dizer o que quer que fosse em público.