Na mistura colorida da massa…

Historicamente o carnaval é um ato político, ainda mais quando se pensa em Pernambuco. Do passo do frevo como dança de luta vinda da capoeira, aos cocos, maracatus e caboclinhos, como cultura marginalizada que ganha visibilidade na festa.

Por Rodrigo Barradas e Ana Cristina Santos

Bloco eu acho é pouco - Aurélio Velho

E ainda mais hoje, numa realidade social em que a arena pública é vista como descartável — os que podem pagar, se isolam em pequenas áreas privadas para fugir de uma violência que aumenta com essa lógica higienista —, a festa se torna ainda mais transgressora ao conclamar que as pessoas ocupem as ruas das cidades e que façam delas, lugares vivos de coexistência pacífica de nossas diferenças.

Em Olinda, onde a defesa das tradições locais tem uma história viva de resistência cultural, os sons dos clarins e trompetes já são ouvidos entre as batidas nervosas de um caixa percussivo. Uma multidão abre caminho no meio de outra, quase provando que dois corpos podem sim ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. E se tem algo que pode definir esse espírito coletivo do carnaval é a exaltação da vida e da liberdade em sua plenitude, mesmo nos contextos de repressão.

Foi assim que num clima de liberdade cerceada, ainda em 1977, o bloco “Eu Acho é Pouco” era fundado por militantes de esquerda, entre eles, ex-presos políticos e várias pessoas que sentiram na pele a violência e as restrições, como consequências diretas de um regime opressor como foi a Ditadura Militar.

Nesses 40 anos, como explica Joana Chaves, uma das organizadoras do bloco, o Eu Acho é Pouco sempre se manteve em defesa da democracia e, o mais importante segundo ela, da liberdade de poder brincar da maneira que se quiser no carnaval. “Fizemos camisas alusivas ao confisco das poupanças do governo Collor, assim como camisas que celebravam a eleição de Lula em 2002, da mesma forma que fizemos camisas que criticavam o que considerávamos equívocos dos governos de esquerda”, lembra.

“A camisa desse ano foi pensada pela designer e artista Lin Diniz como um espelho de todos os valores e batalhas que o bloco sempre encampou, tendo a frase ‘Fora Temer’ como lema principal. As outras frases ‘Nenhum direito a menos’, ‘Por uma mídia democrática’, ‘Amar sem temer’, ‘Ocupa tudo’, também representam os valores pelos quais o bloco sempre se pautou, em especial o respeito aos direitos de cada um de poder fazer o que quiser de si e do seu corpo”, afirma.

Frevar sem Temer

O emblemático Fora Temer não será exclusividade do Eu Acho é Pouco no Carnaval 2017. Do recifense Eu me vingo de tu no carnaval à sátira do Quanta Ladeira — Bloco carnavalesco conhecido por reunir renomados músicos pernambucanos como Lenine, Lula Queiroga, Luck Luciano, Silvério Pessoa e Zé da Flauta — a crítica ao governo ilegítimo é uma constante. 

O Bloco Sai na Marra é mais um que une folia e crítica política. São 31 anos da troça fundada pelo pessoal do PCdoB, em Pernambuco. Nesse carnaval o tema é o “Não me Venha com Indiretas. Sai na Marra, Temer”. A ideia é a de fazer sempre uma festa democrática e política, proporcionando um carnaval público, criativo e irreverente.

 

O pessoal do Sai na Marra acredita na junção das palavras carnaval e revolução, como diz parte da letra do hino do bloco: “Sai na marra chegou, chegou com garra total / Subindo e descendo as ladeiras de Olinda / Pra revolucionar o carnaval”. Uma revolução com alegria, em plena Festa de Momo? E por que, não?

Criada em 2007 por ativistas que lutam pela preservação da Mata do Engenho Uchoa, a Troça Carnavalesca Mista Arrebenta Sapucaia! associa a luta pelo meio ambiente com a denúncia do golpe parlamentar no Brasil: “Arrebenta Sapucaia! Vamos brincar sem Temer!” é o tema escolhido pelo grupo do Movimento em Defesa da Mata do Engenho Uchoa, hoje constituído de mais de cem entidades entre personalidades, parlamentares e instituições públicas e religiosas como sindicatos, escolas, universidades, centrais, LGBT, movimento popular e cultural.

“Conseguimos ao longo dos anos extinguir projetos de construção de privês de alto luxo; casas populares; redução da área da Mata; incêndios criminosos; o projeto de instalação de uma Usina de lixo e conquistamos ainda o plano de Manejo para a área da Mata do Engenho Uchoa, denominada Refúgio de Vida Silvestre; o aumento da área protegida de 20 para 171 hectares e a constituição do Conselho Gestor”, disse Augusto Semente, um dos organizadores do bloco e membro do Movimento em Defesa da Mata do Engenho Uchoa.

Nem com uma flor

A luta pelos direitos das mulheres também ganha força nos festejos pernambucanos. O bloco Nem com uma Flor, organizado pela Secretaria da Mulher do Recife, levará cerca de cem batuqueiras, sob o comando da mestra Joana, do Maracatu Baque Mulher, para a Praça do Arsenal, no dia 23/02. O bloco ampara a campanha contra a violência contra a mulher que envolve distribuição de materiais de conscientização e um espaço de acolhimento para mulheres em situação de violação de direitos.

Nas ladeiras de Olinda os direitos da mulher também viraram tema de bloco. O Não Agressive Não!, em seu primeiro ano, busca reunir mulheres e homens que defendem a bandeira emancipacionista e os direitos femininos. “A ideia do bloco é apoiar as causas das mulheres, da luta pela igualdade de direitos, reforçando bandeiras importantes e homenageando mulheres que se destacaram nessas lutas”, explicam Luana Rocha e Raíssa Barros, idealizadoras da troça. Em 2017 sairão lembrando a luta histórica contra o beijo forçado no carnaval olindense.


Bloco Vaca Profana / Foto: Beto Figueroa
 

Outros blocos como o Vaca Profana, também trazem para as ruas a temática feminista. O grupo estende as atividades para além do período carnavalesco, realizando oficinas e palestras sobre emancipação feminina e contra o assédio. A crítica ao governo ilegítimo de Temer, também está presente na sua camisa. Fora Temer; Ocupa Tudo; Nossa Escolha; Sem Assédio e Tire seu Terço do meu Ovário, são temas para o carnaval desse ano, que mostram que a luta pelo empoderamento feminino também é uma luta por um estado laico e democrático.

Apaixonada por carnaval a deputada federal Luciana Santos avalia como positiva a organização de blocos com temáticas relacionadas às causas progressistas. “O carnaval é uma das expressões populares mais legítimas do nosso povo. Estamos acostumados à irreverência entre os brincantes e sempre a política faz parte da festa”, comenta a pernambucana. “Esse é um espaço legítimo para que a gente possa, de um jeito descontraído e alegre, que são características dos brasileiros, continuar discutindo assuntos importantes e elevando a consciência do nosso povo”.