Publicado 15/03/2017 09:52
A reportagem sugere um grande aumento dos gastos em defesa em 2016, num notável exagero, como veremos. O que observamos ano passado, na verdade, pode ser melhor descrito como um recuperação parcial em relação a média dos gastos nos últimos anos em defesa nacional.
É um equívoco fazer a comparação tendo por base 2015, um ano absolutamente atípico, anômalo, em função de fatores maiores como a campanha para derrubar Dilma, as pautas-bombas de Cunha e a “mão de tesoura” de Joaquim Levy, que em seu conjunto comprimiram fortemente investimentos do governo federal.
A comparação correta é de 2016 com 2014 – último ano relativamente normal do governo Dilma –, que mostrará que o gasto ao final de ano passado, celebrado pela Folha, foi na verdade R$ 3,1 bilhões menor. Aliás, o próprio ministro da defesa atual, na reportagem, corretamente situa que se tratou de “uma recomposição” e propõe “voltar ao pico do começo da década de 2010”, ou seja, entre o final de Lula e início de Dilma.
Mas o que vale discutir é o que vem pela frente.
O impacto do teto de gasto para os investimentos em projetos estratégicos nacionais poderá ser dramático em pouco tempo. O próprio governo, em relatório entregue ao Valor Econômico (01/03/17), aponta para uma queda, e em alguns caso até de desaparecimento, da rubrica investimentos, no âmbito das despesas discricionárias (não-obrigatórias) da União, mesmo no improvável cenário de aprovada a reforma da previdência na forma proposta pelo Executivo.
O jornal fala de cinco projetos que estariam sendo priorizados: programa de submarinos da Marinha, na FAB caças Gripen e avião cargueiro KC-390, produzidos pela Embraer, e no Exército, blindado Guarani e vigilância das fronteiras terrestres (Sisfron).
Ocorre que todos estes projetos, longos contratos de aquisição e desenvolvimento, tem desembolsos igualmente alongados. Em todos os cinco citados, aliás, os desembolsos já realizados são inferiores ao ainda a pagar, como mostra a tabela abaixo, tornada pública pelo Ministério da Defesa em audiências na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, em novembro último.
Isso torna necessário um debate sobre as formas do país garantir a continuidade dos projetos estratégicos nacionais num quadro em que estes entram em contradição com a política econômica do governo atual.
Cabe resgatar que nos governo Lula e Dilma ocorre uma importante elevação dos investimentos para aquisições de defesa, com o início efetivo de grandes projetos estratégicos das Forças Armadas. Estes investimentos são consequências da Política e da Estratégia Nacional de Defesa de 2008, orientações de Estado, a partir das quais o país realiza uma inflexão importante, iniciando estes grandes projetos, a partir da ideia-força de equiparar a estatura de Defesa à estatura geopolítica do Brasil, então em franca ascensão.
Já no período final de Dilma, com Aldo Rebelo, o Ministério da Defesa inicia estudos no sentido de elevar os gastos em Defesa para 2% do PIB, um salto factível, ainda que, na média, inferior a China, Índia ou Rússia, países dos BRICS. Esse incremento poderia finalmente tornar factível o PAED (Plano de Articulação e Equipamento de Defesa), amplo conjunto de projetos de modernização das Forças Armadas que começou a ser desenhado em 2012, com o Livro Branco de Defesa Nacional.
O jornal, no editorial, parece deixar claro que buscou fabricar uma notícia positiva para mirar noutro alvo: o sistema de previdência militar. Exceto neoliberais extremistas – que hoje hegemonizam a agenda nacional –, há uma ampla compreensão nacional a respeito da singularidade da profissão militar, que, corretamente, exige regras especiais de aposentadoria. O militar, na missão de servir a soberania da pátria, deve possuir um regime especial dado o caráter único de sua atividade-fim e as condições que o país exige de aptidão para cumpri-las.
Ao pautar o tema, no entanto, o jornal tem o mérito de permitir problematizar questões relevantes para o país relacionadas a política de defesa.
A defesa acional, no governo Temer, sofre consequências de políticas e iniciativas que vão contra o interesse nacional e fragilizam o projeto nacional.
As graves restrições de financiamento do sistema de ciência, tecnologia e inovação demonstram isto.
A fragilidade e a ameaça de desnacionalização de “joias da coroa” de nossa base industrial de defesa – empresas de tecnologia avançada de capital nacional –, igualmente.
O risco de um acordo com os norte-americanos sobre o Centro de Lançamento de Alcântara lesivo a soberania nacional se apresenta real.
A Marinha do Brasil anuncia a desativação do Navio Aeródromo (“porta-aviões”) São Paulo (**). Com isso, provavelmente por alguns anos, o Brasil deixará de ser o único país do hemisfério sul – e um dos seis do mundo – a possuir este instrumento chave numa Esquadra para a projeção de poder.
As Forças Armadas também tem sido demandadas, por decisão de Temer, para responder ao aspecto mais sensível decorrente da grave crise dos governos estaduais: a questão da segurança pública.
Um problema federativo que este governo não apenas não enfrenta como deixa piorar. Sua proposta é estender para os Estados a visão ideológica dominante no governo federal, impondo à Federação, tetos de gastos e privatizações de estatais da área de energia, saneamento e setor financeiro como condição para socorro financeiro. A solução, no entanto, passa pelo fortalecimento dos governos estaduais e não por seu debilitamento.
Remédio amargo, que agrava a crise e faz o governo Temer utilizar o extraordinário instrumento constitucional de garantia da lei e da ordem, conhecida por sua sigla GLO, como recorrente. Trata-se do emprego das Forças em atividade policial, função subsidiaria, mas que com a crise da Federação, vai se tornando padrão. Antes utilizada apenas em situações excepcionais, nos primeiros nove meses deste governo, foram determinadas por Temer seis operações em Estados como Rio de Janeiro e Espirito Santos, segundo o ministro da Defesa (Valor, 16/02/17).
Utilizar as Forças Armadas como substituta das polícias estaduais é desvio de função da missão principal destas instituições, a defesa da soberania nacional, e inadequadas do ponto de vista militar (operacional e doutrinariamente). Pior é identificar que se aprofunda nesta linha equivocada, em desalinhamento com a Política Nacional de Defesa, ao se propor que as Forças Armadas se envolvam na questão da crise penitenciária.
O Congresso Nacional debaterá nos próximos meses as novas versões da Política e a Estratégia Nacional de Defesa, encaminhadas no final de 2016. Será a oportunidade de discutir estas e outras insuficiências no setor de Defesa nacional, vertebra essencial para a construção da Nação.