A restauração da capela e a História do Futuro

Que relações podemos estabelecer entre a restauração de uma antiga capela e o futuro político do Maranhão?

Cristiano Capovilla* e Fábio Palácio**

Capela das Laranjeiras

O ex-presidente e escritor José Sarney, em curto artigo veiculado no último domingo (19) em jornal de sua propriedade, estabelece a disjuntiva entre passado glorioso e futuro tenebroso, de vez que, na realidade presente, “tudo cai no Maranhão”. Na visão de Sarney, a culpa pelo suposto infortúnio seria de uma doutrina apresentada como avessa à “propriedade” e à “religião”: o comunismo, recentemente alçado ao poder central do estado com a eleição do governador Flávio Dino.

Em se tratando de igreja, futuro e Maranhão, talvez o mais conceituado cronista ainda seja o padre Antônio Vieira, que, em sua História do Futuro, deixa-nos um precioso ensinamento acerca daqueles que preferem viver do passado. Retomando a velha querela filosófica entre tradição e modernidade, o Imperador da Língua Portuguesa coloca-se ao lado dos que vivem o presente e constroem o futuro, locus da realização da profecia. Ele critica aqueles que só enxergam autoridade no passado, desconhecendo o trabalho do tempo. São os que têm a cabeça virada para as costas “sem descobrir e inventar cousa alguma”; “são mais copiadores que autores, acrescentando às opiniões número, mas não peso”. Para ele, a causa de serem preteridos os novos é a ignorância acerca do tempo presente ou, pior, a inveja dos contemporâneos: “Inveja que só louva os mortos para melhor denegrir os vivos”.

Argumentando em favor do cumprimento das profecias, diz Vieira: “Os profetas do Velho Testamento anunciaram a Cristo […], mas o Batista mostrou-o melhor. Os outros diziam ‘há de vir’; e ele disse: ‘é este’”. Não por acaso, lembra o Imperador, “a palavra evangelho quer dizer, precisamente, boa nova”. Como nos sugere o crítico literário Alfredo Bosi, “essa pertença do profetismo à linguagem religiosa não impede que a sua aplicação à ordem secular, ao mundo, ganhe uma dimensão política”.

Não pode haver disjuntiva, a não ser estéril, entre o que foi e o que é. Os modernos beneficiam-se do legado e das lições do tempo, inclusive com a possibilidade de corrigir os erros do passado.

Inversamente, toda tradição digna desse nome compreende que só se pode realizar plenamente no devir – ainda que não mais como tradição. Afinal, conforme argumenta o líder comunista Lenin em seu A que herança renunciamos?, não se conserva uma herança “como os arquivistas conservam papéis velhos”. Ser depositário da tradição não significa limitar-se a ela.

É assim que, na relação entre passado e futuro, deve sempre prevalecer a mediação da atualidade. Deve vigorar o desejo e a consciência do presente. Pois o ontem não existe em si, mas apenas subsumido às prioridades de hoje. E esse hoje nada mais é do que a luta política em torno de projetos programáticos, isto é, de projetos de futuro. Passado, presente e futuro unidos em uma única constelação histórica. Devêssemos nós, nesse sentido, aprender com a dialética de Vieira – a mesma que os comunistas reivindicam e pretendem renovar. O jesuíta sabiamente inverte o sentido das palavras: o novo, justamente por vir depois, por último, é verdadeiramente o antigo, pois acumula os séculos passados; já o antigo, por ter vindo primeiro, antes, é precisamente o novo, pois ainda não acumulou a herança do tempo…

“Se a memória bastasse”, questiona-se Vieira, “por que Deus teria nos dado entendimento?”. De fato, muitos de nossos impasses resultam de não compreendermos que o passado jamais se encerra em si mesmo. Nossa existência é efêmera em face da infinitude do processo transformador. Mesmo a forma como as diferentes gerações percebem-se umas às outras diz-nos muito dessa incompreensão. É comum cada geração reclamar para si, e anunciar com pompa e circunstância, a “conclusão” da obra transformadora. Os esforços já realizados são solenemente evocados, e então as antigas gerações mostram-se irritadas e mesmo desorientadas quando a juventude, vocalizando seus anseios irreconhecíveis — tanto nos propósitos quanto, mais ainda, nos sotaques —, proclamam que a transformação afinal não veio, que ainda há muito por fazer.

A disjuntiva entre pretérito e porvir só existe quando este, abdicando do papel realizador que lhe é precípuo, transmuta-se ele próprio em retorno ao passado. Isso pode acontecer em muitas partes, e há quem diga que ocorre hoje no Brasil. Não é, de modo algum, o caso do Maranhão. A restauração da Capela de São José das Laranjeiras é prenúncio de todas as restaurações que precisam ser feitas no Maranhão, pois herdamos uma tradição que se pretende, muitas vezes, em disjuntiva com o futuro. Proclamemos, então, como Vieira: “Saudades do futuro as que ditam as nossas esperanças”.

* Cristiano Capovilla é professor de Filosofia da UFMA e diretor da Fundação Maurício Grabois – Maranhão.

** Fábio Palácio é professor do Depto. de Comunicação Social da UFMA e presidente da Fundação Maurício Grabois – Maranhão.